segunda-feira, 10 de março de 2014

A democracia mais pura

Morris Berman
Nos Estados Unidos os pobres se consideram 
“milionários em dificuldades temporárias”.

A maior parte dos norte-americanos acredita que os dois grandes partidos políticos dos Estados Unidos existem em polos opostos, oferecendo concepções muito diversas a respeito da vida. Porém um exame sério de suas respectivas histórias revela diferenças apenas em termos de estilo, não de substância. Império versus Império Light, como colocou certa vez o escritor canadense Michael Ignatieff. 

A esta altura parece ter ficado claro quem é o verdadeiro Obama. Ele é o homem que apontou como assessores econômicos indivíduos que abraçavam a mesma ideologia neoliberal que levou ao crash de 2008; é o homem que ignorou o drama dos pobres e dos desempregados depois do crash, e canalizou em vez disso mais de 19 trilhões de dólares às mãos de banqueiros de Wall Street – os quais mais tarde concederam a si mesmos enormes bonificações aprovadas por ele.

É o homem que condenou o ignominioso massacre de crianças em Newton, Connecticut, dezembro passado, ao mesmo tempo em que enviou miniaeronaves teleguiadas ao Afeganistão e ao Paquistão – as quais, ficou demonstrado, assassinaram crianças em regime regular. De acordo com o New York Times, o presidente conduz “quintas-feiras de terror”, reuniões semanais com seus assessores de segurança nacional, durante as quais discute quais suspeitos de terrorismo devem ser assassinados por miniaeronaves teleguiadas. Em um terço desses casos, afirma o New York Times, Obama escolhe ele mesmo os alvos – alvos que incluem cidadãos americanos. 

Ele fala da admirável liberdade desfrutada pelos cidadãos da nossa democracia, ao mesmo tempo em que persegue agressivamente dissidentes [como Snowden] e faz com que suas agência de inteligência coletem informação a respeito de praticamente todo homem, mulher e criança dos Estados Unidos, como demonstraram revelações recentes. 

Não é preciso ser um gênio para entender que o presidente é basicamente um serviçal, um fantoche militar e corporativo, apesar do verniz sutil de retórica social que emprega de vez em quando. 

Porém quem é realmente Barack Obama? Se olhar fundo nos olhos dele, seja pela televisão ou nas fotos de jornal, vai encontrar uma certa ausência, uma espécie de vácuo. Retórica, afinal de contas, não passa de retórica; por trás jaz uma pessoa vazia. Ele é chique, é bem-composto, e espiritualmente não batalha por causa alguma. Ross Douthat captou isso bem quando escreveu, mês passado, que Obama é basicamente uma performance. O homem é uma casca; carece de um compasso moral interior, e é por isso que Wall Street, o Pentágono e a Agência Nacional de Segurança foram capazes de seduzi-lo tão facilmente. Como se trata de um recipiente vazio, foi rapidamente preenchido com os programas dos ricos e poderosos, de modo que agora até o genocídio faz parte de sua agenda pessoal.
É claro, o vazio do qual estou falando pode ser encontrado também nos olhos de Clinton, de Bush filho, de Bush pai ou ainda de Mitt Romney, – lembra dele? – que era pouco mais do que um penteado ambulante, um dos indivíduos mais sem conteúdo que já chegou a abrilhantar o palco político norte-americano. 

  O alvo deles é fazer parte da minoria rica, e estão iludidos o bastante para achar que podem.

Mas o que se entende por isso, que o povo americano escolha “homens ocos” (como colocou certa vez T. S. Eliot) para representá-lo? Não basta identificar esses indivíduos como porta-vozes dos ricos e poderosos. Eles o são, mas são também porta-vozes de praticamente todos os demais nos Estados Unidos, e é por isso que foram eleitos.

Qual americano não comprou a ideia do sonho americano? Como disse John Steinbeck há muitos anos, nos Estados Unidos os pobres se consideram “milionários em dificuldades temporárias”. E como argumento em Why America Failed/Porque os Estados Unidos fracassaram, o alvo dos colonizadores no continente norte-americano, desde o final do século XVI, tem sido a acumulação de capital – “a busca pela felicidade”, como colocaria mais tarde Thomas Jefferson. 

Em março do ano passado a organização Pew Charitable Trust lançou os resultados de uma pesquisa que revela que a maior parte dos americanos não é contra a existência de uma minoria diminuta e rica – os famosos 1%. Pelo contrário: o alvo deles é fazer parte dessa minoria, e estão iludidos o bastante para achar que podem.

Essa é uma das razões pelos quais o movimento Occupy Wall Street teve vida curta, e pelos quais a questão da desigualdade social foi ignorada na última eleição presidencial, não tendo sido sequer mencionada nos debates que precederam as eleições.

Rico ou pobre, praticamente todo americano quer ser rico, e de fato vê isso como o propósito da vida. Nesse sentido somos a democracia mais pura da história do mundo, porque em termos ideológicos o governo e o povo americano veem as coisas exatamente da mesma forma. Para citar Calvin Coolidge, “o negócio dos Estados Unidos é o negócio”. Ser americano é ser insaciável.

É por isso que elegemos líderes que tem como característica a inexpressividade, um certo vácuo essencial. O sonho americano, afinal de contas, acena com um mundo sem limites, convida a termos sempre mais. “Mais”, no entanto, não é um caminho espiritual, não é uma filosofia de vida. “Mais” não tem conteúdo algum, e é por isso que quando olha nos olhos de um Obama, de um Clinton ou de uma Hillary Clinton (que é provavelmente nossa próxima presidente) você não só não vê nada, mas uma forma aterrorizante de nada. Infelizmente, esse olhar vazio caracteriza também grande parte da população norte-americana: o microcosmo reflete o macrocosmo, como gostavam de dizer os alquimistas medievais. Essa é outra evidência de uma pura democracia: ninguéns elegem ninguéns, e em seguida todos se perguntam o que deu errado.
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Fonte:  http://www.baciadasalmas.com/2014/a-democracia-mais-pura/ acesso: 10/03/2014
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