domingo, 2 de março de 2014

Os bastidores de uma discussão ética

 Marta Gleich*
 

Carta da Editora
 
No início da semana passada, meus colegas Nilson Vargas, editor-chefe do jornal, e Carlos Etchichury, editor de Polícia, debateram entre eles e comigo, por e-mail, uma questão ética. Achei interessante revelar o diálogo aos leitores. A conversa começou num questionamento feito na segunda-feira por Nilson: “A matéria do menino Maurício (Maurício Luan Maciel de Oliveira, que ficou tetraplégico em 2011 após levar um tiro numa discussão de trânsito) comoveu e mobilizou. Ele está recebendo ajuda. Pessoas ligam para ajudar. Pessoas choraram ao ler a história dele. Mas por que contamos a história dele e não a história de outros tantos injustiçados, pessoas com sequelas, abandonados pela sorte por aí afora? O que fez desta uma história a merecer tanto espaço? Havia uma razão ou desequilibramos a balança ao contar esta, sabendo que não conseguiremos contar tantas outras?”.

Etchichury, o editor responsável pela reportagem, respondeu: “Decidimos publicar esta matéria porque o repórter José Luís Costa teve acesso a uma história comovente, de um menino que ia conhecer um parque de diversões e, em função de uma discussão banal de trânsito, acabou baleado na coluna. Então, aos 11 anos, o garoto, que sonhava em ser goleiro do Grêmio, foi condenado a passar o resto da vida numa cama, na extrema pobreza. Para piorar, o autor do disparo continua em liberdade, sem ter sido julgado. Precisa mais? Temos de pensar diferente. Histórias assim oxigenam o jornal, humanizam, saem da curva numa editoria como a Polícia. Olha a energia que geramos, o impacto social desta matéria, pautamos o debate, mobilizamos o Grêmio, que levou quatro atletas para visitar o menino. Eu acho que acertamos a mão”.

Veio a tréplica do Nilson Vargas: “Bom que ajudamos. Mas é um enredo conhecido. Uma matéria sobre alguém com dificuldades, uma onda de solidariedade, uma segunda matéria mostrando a onda de solidariedade. Quantas podemos fazer dessas? Centenas. E de certa forma somos até injustos em fazer com um ou dois e não fazer com milhares. Todos terão um detalhe, uma sutileza para defender que sua história vire matéria e gere onda de solidariedade. Precisamos refletir sobre isso e sobre o nosso papel”.

O debate expõe o tipo de decisão ética que jornalistas tomam todo dia numa Redação. É justo, é correto, escolher este caso (e não tantos outros) para contar? Que consequências estão por trás de cada escolha de um entrevistado, de uma pauta, de uma edição maior ou menor? Na minha opinião, a reportagem pode ter beneficiado o menino Maurício – que bom! –, mas ela também pode ter servido para despertar no leitor gestos nobres, como ser solidário, comportar-se de forma pacífica no trânsito, olhar para o lado para ver quem está precisando de ajuda perto de nós. Pode ter feito o leitor refletir sobre justiça, miséria, sistema de saúde, sonhos interrompidos, a doação de uma mãe, a violência que ceifa a vida de adolescentes. Se isso aconteceu – e jamais saberemos em que grau pode ter ocorrido –, cumprimos nosso papel.
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* Diretora de Redação na Zero Hora - Grupo RBS
Fonte: ZH online, 02/03/2014
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