Marcelo Gleiser*
Acabei virando cientista porque queria ter uma vida em que a imaginação não é aprisionada pelo bom senso
Quando era garoto, costumava passar as férias de verão na casa dos meus
avós, em Teresópolis, uma cidade na serra dos Órgãos, perto do Rio. Eram
80 km de viagem, os últimos 25 km atravessando montanhas, uma sequência
espetacular de picos de granito.
O Fusca do meu pai subia com muito esforço. Mas pouco me importava, e
torcia mesmo para que o carro avançasse bem devagar. Assim, tinha mais
tempo de olhar pela janela, acompanhando a incrível transformação do
cenário, do caos urbano de Copacabana às montanhas sublimes, recortadas
por centenas de milhões de anos de erosão, revestidas aqui e ali pela
inigualável mata atlântica.
Costumávamos parar na serra para comer e olhar as preguiças nas árvores
vivendo em câmera lenta. Volta e meia, um bando de tucanos passava
fazendo a maior algazarra.
Para meus olhos de criança, a transformação da cidade em montanhas, dos
prédios no majestoso Dedo de Deus, dos vasos de planta na explosão de
orquídeas e bromélias, era algo de mágico.
Talvez percebesse isso intuitivamente, mas sabia que para vivermos na
cidade tínhamos de abrir mão da natureza; ou, o pouco que tínhamos dela
era aprisionado: passarinhos na gaiola, árvores estranguladas pelo
cimento das calçadas. Meu porteiro dizia que passarinho cego cantava
melhor. Pode ser, mas é um canto sofrido, entoado pela melancolia.
O Carnaval era sempre lá, na casa das montanhas. Minha família escapava
do calor e do buchicho, e íamos nos bailes da tarde, as matinês,
vestidos de pirata e de cowboy, pulando e marchando aos som da banda ao
vivo. Era uma grande festa da imaginação, cada um sendo o que queria ser
mas não podia.
Crescer é perder a capacidade de imaginar que o imaginado é o real; é
erguer cada vez mais a muralha entre a realidade e a imaginação, ficar
sensato, esquecer de manter a mente aberta para contemplar o impossível.
Nessas horas de nostalgia entendo por que acabei virando cientista.
Queria ter uma vida em que a imaginação não é aprisionada pelo bom
senso. É bem verdade que nenhuma criança pede para se fantasiar de
Einstein ou de Santos Dumont. (Se bem que já saí com a Unidos da Tijuca
vestido como o dito cujo.) Mas poderiam. Pois se um reinventou o que é o
espaço e o tempo, o outro inventou como podemos voar.
"Crescer é perder a capacidade de imaginar
que o imaginado é o real; é
erguer cada vez mais a muralha entre a realidade e a imaginação, ficar
sensato,
esquecer de manter a mente aberta
para contemplar o impossível."
São exemplos de pessoas que cresceram se recusando a crescer, ao menos
sem erguer uma muralha intransponível entre realidade e imaginação. Pelo
contrário, mostraram que é possível transformar a realidade em algo
aparentemente mágico usando justamente a imaginação.
É esse o aspecto mais cativante da ciência, recriar o mundo. Imagino a
cara do meu avô se me visse falando num iPhone, ele no Rio e eu em
Teresópolis; ou se usasse o seu GPS para evitar o trânsito na avenida
Brasil; ou se olhasse para o céu noturno e vislumbrasse satélites
cruzando a escuridão; ou se visse imagens de mundos distantes, trazidas
por telescópios espaciais.
Que mundo mágico esse em que vivemos, hein, vô? E que pena que pouco
ligamos para essa mágica toda ou paramos para refletir que ela vem
justamente dessas pessoas que têm um compromisso aberto com a
imaginação.
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