domingo, 2 de março de 2014

O FUTEBOL E A POESIA

 Rubem Alves*
As razões pelas quais se torce por um time de futebol continuam a ser um mistério para mim. Por que esse time e não aquele? Por que o Flamengo? Por que o Palmeiras? Por que o Corínthians? Minha busca foi infrutífera. Não consegui descobrir as razões que levam uma pessoa a se apaixonar por um time. Parafraseando o místico Ângelo Silésius eu escrevo: “O torcedor não tem porquês. Ele torce porque torce...”
 
Torcedores são seres apaixonados. Por sua paixão eles gritam, choram, brigam, matam, morrem do coração. Ao ponto de as torcidas com frequência se tornarem hordas assassinas.
 
Ao se torcer por um time o que é que se está amando? Os jogadores do time? Não. Jogadores não são torcedores. Os torcedores são apaixonados puros que jamais trocam de time, ainda que seu time esteja em último lugar na classificação.
 
Os jogadores, ao contrário, trocam de time pela vil razão do dinheiro. Se um outro time lhes oferecer um salário maior eles trocarão o time pobre pelo time rico. O que prova que eles não jogavam por amor ao time em que jogavam. Apenas vendiam as suas habilidades pelo salário que recebiam. Um torcedor mudaria de time por dinheiro? A psicologia do torcedor nada tem a ver com a psicologia do jogador. A psicologia do torcedor é o oposto da psicologia do jogador.
 
O torcedor é um amante fiel. Jamais trai. O jogador, ao contrário, é um traidor em potencial. Está sempre de olho num outro “caso amoroso”. Então, ao se torcer por um time não é pelos seus jogadores que se está torcendo. Eles não são seres confiáveis. Será que o objeto da paixão do torcedor são os cartolas, os donos do time? Mas é claro que não. Frequentemente a paixão por um time vai lado a lado com uma raiva pelos seus cartolas.
 
Torce-se, então, por quais razões? A única razão que resta é o nome. Torce-se pelo nome do time. Da mesma forma como se vicia com cocaína, vicia-se com um nome. O nome é o gatilho que dispara o êxtase. A torcida grita o nome, o nome entra na veia, a adrenalina circula no sangue, o coração dispara, os pulmões gritam, e no céu estouram os fogos de artifício.
 
Mas esse nome tão poderoso é como um bolso vazio. As coisas que estão dentro do bolso, jogadores, cartolas, o técnico, podem ser trocadas à vontade. Esses entes nada têm a ver com a paixão do torcedor. O torcedor torce por um simples nome...
 
Você não acredita. Refuga. Recusa-se a acreditar que torce apenas por um nome. Um nome, ora... Vou lhe contar um estória verdadeira, acontecida com meu sogro, alemão recém chegado ao Brasil como imigrante. Era filho de um pastor adventista. Como você deve saber os adventistas são gente que leva a Bíblia a sério e por causa disso abstém-se de comer os alimentos que as Sagradas Escrituras proíbem. Pois o meu sogro, além de obedecer a todos os tabus alimentares da sua religião, tinha um tabu particular: não comia miolo, detestava miolo, embora nunca tivesse comido miolo. Pois um dia ele foi convidado a jantar numa casa de cerimônia.
 
O prato mais delicioso do jantar foi couve-flor empanada, que estava deliciosa. Comeu e repetiu com prazer. Ao final, barriga cheia, ele dirigiu um elogio à anfitriã: “Essa couve-flor empanada estava divina!” A anfitriã o corrigiu: “Não é couve-flor empanada... É miolo empanado...”.
 
Muito embora boca e estômago tivessem aprovado a “coisa” com o nome de “couve-flor”, ao ouvir a palavra “miolo” boca e estômago reagiram imediatamente: ele teve de correr para o banheiro e vomitou tudo...
 
O que é que ele vomitou? O que o fez vomitar não foi a “coisa”, foi a palavra... Ele vomitou palavras. Bem disse Jesus que não nos alimentamos apenas com comida; nós nos alimentamos com palavras...
 
Isso vale para tudo. Vale também por amor. Milan Kundera, no seu livro 'A insustentável leveza do ser' diz que o amor começa quando ligamos uma metáfora poética ao nome de uma mulher. Então, não é a mulher que amamos; amamos a metáfora poética que ela carrega.
 
Isso que escrevi tem a ver com poesia... Você nunca pensou nisso, que ao gritar o nome do seu time você estivesse gritando uma metáfora poética. É por isso que você ri, é por isso que você chora ao ouvir esse nome... Sem saber você torce pela poesia...
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* Teólogo. Filósofo. Escritor.
Fonte: Correio Popular online, acesso 02/03/2014
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