quinta-feira, 1 de maio de 2014

MELHOR NÃO TER NASCIDO TAL

Mário Sergio Conte*

A psicanálise, o seu estatuto na cultura e o mercado 
da saúde mental mudaram
Renato Mezan serve de Virgílio para quem se perdeu na selva obscura da psicanálise. O mapa que ele oferece agora é “O tronco e os ramos”, um livro de ensaios que repensa a trajetória da disciplina criada por Freud há mais de um século. A psicanálise não se sai esfuziante do estudo de Mezan, apesar de ele ser um dos seus mais reputados praticantes e autor de “Freud — Pensador da cultura”, livro que marcou época. Há quase três décadas, ele ficou meses na lista dos mais vendidos, mas é bem mais difícil que aconteça o mesmo com “O tronco e os ramos”. O que mudou?

Mudaram a psicanálise, o seu estatuto na cultura e o mercado da saúde mental. Se os escritos de Freud continuam a ser a referência, já não são as tábuas da lei. Mezan identifica quatro escolas que, partindo dos mesmos conceitos, chegaram a teorias e práticas bastante diferentes entre si. São as de Melanie Klein, a de Lacan, a da psicologia do ego e a de Winnicott. Para ser uma escola de verdade, cada qual teve que se haver com as quatro dimensões da psicanálise.

Na primeira dimensão está a teoria da mente, com suas instâncias e energia: ego, superego e id; o inconsciente e a libido. A segunda diz respeito ao desenvolvimento da psique, com as fases oral e anal, a latência e o complexo de Édipo. Vem então a constituição psíquica do adulto, que pode ser neurótico obsessivo, paranoico, esquizofrênico etc. Se o sofrimento emocional é inescapável, chega-se à quarta dimensão, a terapêutica, na qual o paciente enfrenta seus traumas com o auxílio do analista.

Com a diáspora provocada pelo nazismo, a psicanálise austríaca se espalhou pela Europa. Cada escola analítica abordou os quatro domínios com base na interpenetração da teoria com o ambiente intelectual e nacional em que se implantaram. Assim, o povo inglês, que preza a intimidade e admite com simpatia os excêntricos, fez com que a psicanálise adquirisse determinada feição.

Na França, cuja paisagem intelectual a partir do pós-guerra foi abalizada pela dialética e pelo estruturalismo, a psicanálise seguiu outro sentido, definido por Lacan. Ao se enraizar na Argentina, a teoria lacaniana encontrou uma estrutura de saúde pública, criada pelo peronismo, que atendia pessoas com desordem mental. Com a ditadura dos anos 1970, vários analistas argentinos se transferiram para o Brasil, onde o pensamento de Lacan fez uma nova aclimatização.

As 600 páginas de “O tronco e os ramos” acompanham essas mudanças. O livro é claro e profundo, mas pinta um quadro mais para os praticantes do ofício que para os leigos. As desavenças entre as escolas parecem ter adquirido um caráter museológico. O que importa mais é a quarta dimensão, a terapêutica, mas ela é matéria só para os iniciados. Já a cartografia freudiana da psique, o seu desenvolvimento e patologia, perde relevância cultural. Tornou-se um dado mitológico, tão inútil quanto a santíssima trindade da teologia.

Freud baseou o seu saber no trato com as suas pacientes, um punhado de histéricas da Viena burguesa no início do século passado. Hoje, a demanda por bem-estar emocional decuplicou milhares de vezes. O mal-estar da civilização se expressa na depressão, e não na histeria. Milhões de deprimidos não recorrem ao tratamento psicanalítico, que é caro, demora anos e tem resultados incertos.

Eles vão a psiquiatras. E estes receitam antidepressivos que lhes trazem algum alívio, criam dependência, têm sequelas e não os livram de vez dos males da alma. Regrediu-se ao tempo anterior a Freud, à redução do espírito à biologia. As mentes que sofrem viraram mercado de uma indústria de medicamentos que se assenta na ciência e no capital.

Veja-se a China. Pelos dados oficiais, ela tem 60 milhões de pessoas com transtornos mentais. Seis milhões delas configuram casos graves. A República Popular tem também uma das maiores taxas de suicídio do mundo. São dois milhões de tentativas ao ano, das quais 300 mil mortes se concretizam, a maioria delas de homens, caso único no planeta. (Não se credite a responsabilidade apenas ao Partido Comunista: a última onda de suicídios ocorreu numa fábrica de iPhones, que pagava menos de quatro reais por hora aos trabalhadores.)

Frente a essa catástrofe sócio-emocional, alemães traduzem Freud para o mandarim, franceses vertem Lacan e psicanalistas americanos interpretam sonhos de chineses sem sair dos Estados Unidos — usam o Skype. Apesar do empenho das escolas, não haverá psicanálise para todos, Tânatos seguirá massacrando Eros. Para abrandar o sofrimento mental das multidões, um otimista diria que se deveria mudar muitas coisas na base, na raiz, nas determinações da vida. Um trágico admitiria que seria mais fácil não ter nascido tal.
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: O globo online, 01/05/2014
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