domingo, 4 de maio de 2014

O governo dos outros

Eduardo Wolf*
 
Em uma série de artigos para um programa da Rádio BBC, o filósofo conservador e escritor britânico Roger Scruton evoca um episódio familiar que contém uma valiosa lição sobre a democracia. Conta-nos Scruton que seu pai, um ardoroso entusiasta do Partido Trabalhista, sempre seguro da corrupção dos políticos do Partido Conservador, considerava os tories, suas leis e todas as instituições britânicas inimigos dos verdadeiros interesses da classe trabalhadora. Ficava absolutamente intratável quando os via ganhar uma eleição ou aprovar uma legislação. Ainda assim, diz-nos o autor, seu pai aceitava o resultado, aceitava sua legitimidade e aceitava que tudo o que lhe restava era fazer campanha contra o partido no poder ou pressionar pela rejeição de alguma lei específica.

Essa despretensiosa lembrança pessoal, na verdade, traz ao primeiro plano uma característica fundamental das democracias: a disposição para aceitar ser governado por pessoas das quais discordamos, ou mesmo de que abertamente não gostamos. Para alguns, pode soar estranho atribuir tamanha importância a uma disposição geral dos indivíduos na hora de analisar um sistema tão complexo como o dos regimes democráticos. Instituições representativas, divisão dos poderes, eleições e alternância no poder – esses, sim, são os elementos que de pronto sempre mobilizam a atenção daqueles que querem compreender a natureza da democracia.

Ocorre que tais elementos estão na ponta final de um longo processo de maturação de valores e de práticas políticas e morais que, tal como a disposição de que nos fala Scruton, antecedem e preparam as instituições democráticas. Quando os valores e as práticas da liberdade de expressão, por exemplo, não fazem parte de uma cultura política; quando a independência judicial não é uma prática cultivada; quando a permanência no poder é um projeto absoluto, que transforma opositores em inimigos e elimina a legitimidade dos adversários – nesses casos, dificilmente prosperará essa radical atitude democrática que é viver sob o governo dos outros e governar buscando o convencimento e o consentimento daqueles que não pensam como nós. Em tais casos, pouco importa a formalidade de eleições, ou a separação igualmente formal entre os poderes: a democracia será, na melhor das hipóteses, uma precária encenação, na pior, um arremedo grosseiro a ocultar a realidade da tirania e da opressão.

Foi essa encenação, esse arremedo de democracia que veio abaixo na Venezuela, país transformado em verdadeiro “inferno persecutório”, na expressão do Prêmio Nobel e ex-presidente da Costa Rica Óscar Arias Sánchez. Assistimos naquele país a anos de práticas autoritárias – com o firme e constante aplauso de importante parcela das autoridades do governo brasileiro –, como a manipulação dos distritos eleitorais para formar maiorias chavistas, promovida em 2010 pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela; o recorrente uso do dispositivo da Lei Habilitante, que explicita o caráter ditatorial do regime; e a longa lista de perseguições e encarceramento de opositores, à qual vem se somar agora o assombroso incentivo às milícias chavistas para que “calem” as vozes dissidentes, cujo resultado é hoje tragicamente medido pela contagem dos mortos nos protestos contra o governo de Nicolás Maduro.

No ano em que o golpe militar que instaurou uma ditadura no Brasil completa meio século, o descalabro da situação venezuelana vem integrar o quadro mais geral de nossas reflexões sobre a cultura democrática em nosso continente. Quadro esse, aliás, particularmente agravado em nosso país pelos escandalosos entusiasmos autoritários de velhos ideólogos, hoje defensores de Maduro, que antes ocuparam precisamente a posição de perseguidos por tiranias.

Como se vê, a árdua disciplina da democracia requer mais do que parece.
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* Eduardo Wolf é professor e tradutor. Escreve mensalmente.

Fonte: ZH online, 04/05/2014
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