domingo, 4 de maio de 2014

Desmantelo só quer começo

Antonio Prata*

Onze controles remotos, eis o surpreendente saldo da minha faxina: 11 controles remotos que há muito já não controlavam, mesmo que remotamente, coisa alguma. Ao longo dos anos, as TVs, aparelhos de som, DVDs e videocassetes (juro, até videocassetes) a que serviram foram partindo e deixando-os para trás: órfãos, sem ocupação ou residência fixa, vagavam pela casa ao sabor do acaso; erravam pelos planaltos das cômodas e acampavam nas cordilheiras dos sofás como paraquedistas caídos no deserto; escondiam-se em gavetas e estantes como aqueles soldados japoneses que, décadas após o fim da guerra, seguiam enfronhados na mata, temendo o inimigo. Pois o inimigo era eu: terminada a captura, meti o desconjuntado exército de Brancaleone numa sacolinha plástica e o sepultei no fundo da lixeira.

Imagino que jogar controles remotos no lixo fira gravemente alguma Convenção de Genebra ecológica – não era a intenção avolumar aterros sanitários nem poluir lençóis freáticos com o chorume das minhas teclas SAP –, mas a visão daqueles defuntos eletrônicos me trouxe um sentimento de urgência: eram eles ou eu.

Meu finado tio-avô costumava dizer que “Desmantelo só quer começo”. O Diabo mora nos detalhes, e a pá emperrada de uma batedeira pode precipitar a decadência de um império. Meu tio-avô sabia do que estava falando, ele construiu um império – minas de estanho, manganês – e em sua casa uma batedeira manca não sobrevivia 10 minutos.

O cronista Humberto Werneck, também atento à grandeza que o miúdo esconde, escreveu uma vez sobre a insidiosa contribuição dos copos de requeijão para o fim de um casamento. Aos poucos, esses intrusos vão cavando espaço no armário da cozinha, empurrando lá pro fundo as taças que, no início do namoro, assistiam da primeira fila aos beijos e abraços – é a vulgaridade galgando o terreno da paixão. Até que um belo dia você acorda e descobre que o vinho do amor virou água da bica num copo da Itambé – “Desmantelo só quer começo.”

Tenho medo: numa casa em que 11 finados controles remotos permanecem insepultos por anos a fio, o desmantelo já começou faz tempo, já criou raízes, frutos, lançou esporos. Minha cozinha é cheia de copos de requeijão. Minha gaveta de meias é um sítio arqueológico: poderia escrever uma autobiografia do fim da adolescência até hoje, cada pé representando uma fase da vida. Perder o araminho do pão é uma das duas atividades a que me dedico com mais afinco – a segunda é fechar o saco com aquele nó troncho, lamentando: por que eu sempre perco os araminhos? Por que eu sou assim? Não será possível mudar, me organizar, tomar nas mãos as rédeas da vida?

Claro que é – digo a mim mesmo, enquanto vejo o caminhão de lixo deglutir os expurgos da minha faxina. Este é o início de uma nova fase. A partir de agora serei apolíneo, japoneses e alemães virão fazer comigo estágios sobre organização. Entro em casa de queixo erguido, peito estufado e meu ânimo de gladiador existencial dura quatro segundos: só até ver minha mulher com as mãos enfiadas entre as almofadas do sofá, perguntando se por acaso eu não vi, em algum lugar, o controle da televisão.
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* Antonio Prata é escritor, autor de "Meio intelectual, meio de esquerda" (Editora 34) e "Nu, de botas" (Companhia das Letras). Escreve semanalmente neste caderno.
Fonte: ZH online, 04/05/2014
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