Renato Janine Ribeiro*
Para iniciar minha colaboração no principal jornal do
sul do país, pensei no menino Bernardo, assassinado há um mês em Três
Passos. Não poderemos esquecer tão cedo esse sofrimento intenso, sem
sentido, absurdo. Ele coloca a pergunta obscena, por que se assassina
uma criança? Pior, por que se mata – ou se deixa matar – o próprio
filho? Na melhor das hipóteses (mas improvável), se o pai não tiver sido
cúmplice do crime, mesmo assim se mostrou o pior pai do mundo. Ninguém
merece um progenitor indiferente, que nem se importa onde o filho passe o
fim de semana ou que fique horas na rua, porque a madrasta não abre a
porta da casa. Isso aconteceu e nunca será apagado.
Há dois modos de lidar com sofrimentos excessivos, desmedidos. Um deles é preservá-los na memória, lembrando que são insuportáveis, inadmissíveis. É o que muitos fazem com o Holocausto, horror em estado puro, que desafia toda explicação. Não se deve esquecê-lo. Enfatiza-se seu caráter único, a dor que lacera. Nada devolverá a vida a esse menino, nada reparará o que aconteceu. Fica insepulta, no passado, a abominação.
O outro modo de lidar com o horror é retirar uma lição, é pensar no futuro. É evitar que o mal se repita. Porque crimes como este não são tão raros. A tragédia foi anunciada. Bernardo deu o passo – dificílimo – de ir ao órgão legal, reclamar do pai e madrasta. Quantos meninos de sua idade têm esse nível de elaboração, essa coragem? Duas crianças também se queixaram do pai e madrasta em Ribeirão Pires (SP), no ano de 2008, e também acabaram assassinadas. Os órgãos que deveriam proteger a infância são responsáveis por esses finais infelizes. Temos leis boas, conselhos tutelares, Ministério Público e magistratura, pagos por nós. Por que não funcionaram, nesses casos?
O mínimo que deveríamos ter, agora, é um mutirão nacional para garantir que funcionem. Os Tribunais de Justiça e o Conselho Nacional de Justiça deveriam criar forças-tarefa para apurar onde falhou a rede de proteção. O Ministério pertinente deveria emitir uma nota técnica, ditando procedimentos a adotar quando filhos afirmam ter medo dos pais. Afinal, acreditamos que a proteção da criança passa à frente de qualquer outra. Enquanto os adultos já foram prejudicados por educação e saúde ruins, com os mais novos é possível começar do princípio. Há medidas a tomar. Espero que alguém escreva um livro relatando passo por passo essa história – e cujo interesse estará, não só em responder a nosso choque diante de um filicídio, mas sobretudo em mostrar como esse crime hediondo poderia ter sido evitado, não fossem sucessivas omissões.
Em vários momentos, as vidas desses meninos poderiam ter sido salvas.
Mais que tudo, crianças têm que ser escutadas. Precisam ser levadas a sério. Tem de haver ouvidos, não necessariamente para as acusações que elas fazem, mas para a queixa que emitem. O mal que se faz a uma criança começa pelo descaso com sua voz e pode culminar na sua morte.
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* Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo. Escreve quinzenalmente.
Há dois modos de lidar com sofrimentos excessivos, desmedidos. Um deles é preservá-los na memória, lembrando que são insuportáveis, inadmissíveis. É o que muitos fazem com o Holocausto, horror em estado puro, que desafia toda explicação. Não se deve esquecê-lo. Enfatiza-se seu caráter único, a dor que lacera. Nada devolverá a vida a esse menino, nada reparará o que aconteceu. Fica insepulta, no passado, a abominação.
O outro modo de lidar com o horror é retirar uma lição, é pensar no futuro. É evitar que o mal se repita. Porque crimes como este não são tão raros. A tragédia foi anunciada. Bernardo deu o passo – dificílimo – de ir ao órgão legal, reclamar do pai e madrasta. Quantos meninos de sua idade têm esse nível de elaboração, essa coragem? Duas crianças também se queixaram do pai e madrasta em Ribeirão Pires (SP), no ano de 2008, e também acabaram assassinadas. Os órgãos que deveriam proteger a infância são responsáveis por esses finais infelizes. Temos leis boas, conselhos tutelares, Ministério Público e magistratura, pagos por nós. Por que não funcionaram, nesses casos?
O mínimo que deveríamos ter, agora, é um mutirão nacional para garantir que funcionem. Os Tribunais de Justiça e o Conselho Nacional de Justiça deveriam criar forças-tarefa para apurar onde falhou a rede de proteção. O Ministério pertinente deveria emitir uma nota técnica, ditando procedimentos a adotar quando filhos afirmam ter medo dos pais. Afinal, acreditamos que a proteção da criança passa à frente de qualquer outra. Enquanto os adultos já foram prejudicados por educação e saúde ruins, com os mais novos é possível começar do princípio. Há medidas a tomar. Espero que alguém escreva um livro relatando passo por passo essa história – e cujo interesse estará, não só em responder a nosso choque diante de um filicídio, mas sobretudo em mostrar como esse crime hediondo poderia ter sido evitado, não fossem sucessivas omissões.
Em vários momentos, as vidas desses meninos poderiam ter sido salvas.
Mais que tudo, crianças têm que ser escutadas. Precisam ser levadas a sério. Tem de haver ouvidos, não necessariamente para as acusações que elas fazem, mas para a queixa que emitem. O mal que se faz a uma criança começa pelo descaso com sua voz e pode culminar na sua morte.
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* Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo. Escreve quinzenalmente.
Fonte: ZH online, 04/05/2014
Imagem da Internet: Bernardo assassinado em Três Passos.
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