domingo, 4 de maio de 2014

A ditadura da pressa

Não estranhe se um dia você chegar em algum país africano e perguntar:

– A que horas vai começar a reunião?

E ouvir como resposta:

– Quando as pessoas chegarem.

O diálogo, narrado pelo jornalista Ryszard Kapuscinski no livro Ébano – Minha Vida na África (Companhia das Letras, 2002), ilustra bem como a percepção do tempo é uma construção moldada pela cultura, longe de ser um dado objetivo de realidade.

Enquanto no Ocidente a perspectiva do relógio e da hora certa é hegemônica, em países de predomínio agrícola como Moçambique, na África Subsaariana, a contagem das horas ainda está vinculada aos ciclos naturais. Em vez de ser um imperativo ditando normas, o tempo é vivido como uma dimensão interna, e portanto mais flexível. Ou seja: não existe independente do homem. Assim, quando um moçambicano entra em uma van de passageiros, não pergunta a que horas vai sair. Senta a espera ela lotar.

1397059140 Se marca um horário para sair, mas a chapa (vans que fazem transporte de passageiros em Moçambique) só sai quando as pessoas chegarem. Por isso pode atrasar 30, 40 minutos. O tempo é marcado pela presença das pessoas 1397059140 descreve o pedagogo moçambicano António Braço, professor do departamento de Ciências da Educação e Psicologia da Universidade Pedagógica de Moçambique na delegação da Beira.

Braço, que morou no Rio Grande do Sul por dois anos e atualmente faz doutorado no Pará, sentiu o choque entre as duas visões de tempo ao conviver com brasileiros. No início, não entendia por que aqui havia horário para tudo, até para comer, mesmo que isso significasse jantar com o sol alto durante o horário de verão. Em sua cultura, não era momento de cear enquanto o último raio de luz não se pusesse. O que mais causava estranhamento eram os brasileiros correndo como se estivessem sempre atrasados. Ainda assim, certo dia, quando estava no metrô em São Paulo, voltando da universidade onde fazia mestrado para casa, viu todo mundo saindo apressado e começou a andar no mesmo passo. No meio do caminho, parou.

– Estou a correr por quê? – perguntou-se, diminuindo o andar.

Hoje, depois de 14 anos de idas e vindas entre Moçambique e o Brasil, Braço tenta se adaptar ao ritmo do relógio sem perder a postura de contemplação e de respeito à própria natureza. E ainda questiona a ditadura da pressa.

– As pessoas estão sempre pensando em voltar ou em ir, parece que não querem estar no caminho, como se o caminho não fizesse parte da vida – inquieta-se.

A capacidade de se questionar é justamente uma das características que estaríamos perdendo pela velocidade com que conduzimos nossos dias. Doutora em psicologia social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Jurema Barros Dantas analisa o tema no livro Angústia e Existência na Contemporaneidade (Editora Rubio, 2011). Na sua visão, o fenômeno da angústia enquanto caráter patológico ganha espaço na nossa sociedade na medida em que avança um modo de pensar técnico e cientificista que tem a pretensão de controlar todas as esferas da vida. E isso inclui o tempo. Com a ânsia pelo controle em cada detalhe, acreditaríamos que teríamos mais segurança. O problema é que morte e angústia permanecem como fenômenos que escapam a essas pretensões. Assim, contraditoriamente, quanto maior o esforço de nivelamento e previsão da vida, mais frequentes seriam os sentimentos de tédio e falta de sentido que prenunciam a angústia.

“Enquanto tudo funciona segundo o previsto, como se a vida fosse perfeitamente controlável, nos sentimos seguros e tranquilos. No entanto quando algo ocorre, rompendo a estrutura de sentidos familiar e segura que construímos, surge a angústia”, escreve.

Mas essa angústia, na avaliação da autora, não deveria ser vista como algo negativo. Baseando-se no pensamento de Heidegger, autor de Ser e Tempo, defende a angústia como disposição fundamental para que o homem abandone as pretensões de controle e se abra às possibilidades da existência, suportando essa condição de “estar em aberto” e apropriando-se das escolhas existenciais. Só que essa abertura exige esforço, pois é preciso conviver com a incerteza de resultados improváveis. Em sua obra Serenidade, Heidegger afirma que o homem tende a fugir do pensamento, limitando-se a um raciocínio pragmático:

“O pensamento que calcula nunca para, nunca chega a meditar. O pensamento que calcula não é um pensamento que medita, não é um pensamento que reflete”, escreve.
 Fernanda Valadares
Foi por se permitir remoer a angústia e se abrir para novas possibilidades que a artista plástica paulista Fernanda Valadares, 42 anos, se reinventou. Até sete anos atrás, trabalhava com publicidade e consultorias em design, sofrendo com o ritmo alucinante de São Paulo. No final de 2006, depois de demorar três horas para percorrer de carro um trecho de três quilômetros entre a escola de seu filho e sua casa, presa em um congestionamento, decidiu que havia chegado ao limite. Em 2007, mudou-se para Porto Alegre e passou a se dedicar ao que realmente gostava, a pintura.

– Foi uma escolha de tempo. Queria esticar o tempo – conta.

Desde então, transformou o seu ateliê, no bairro Floresta, em um espaço de meditação. E escolheu o tempo como uma de suas temáticas preferidas. Recentemente, expôs no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, na Casa de Cultura Mario Quintana, o trabalho Na Adega Evaporada, que remete à fluidez do tempo. Um dos detalhes que mostravam sua proposta de descompressão do tempo e do espaço eram fones de ouvido deixados à disposição do público, sobre um banco, para apreciar as telas. Quando as pessoas se sentavam para escutar, eram surpreendidas. Não havia trilha.

– Era um encontro com o silêncio, consigo mesmo – conta.

Como parte do processo de reencontro com o tempo, Fernanda escolheu uma técnica vagarosa, a pintura encáustica. A base é uma liga de ceras, animal, vegetal e pigmentos, que são aplicadas sobre um suporte e se fundem pela ação do calor. É um procedimento tão antigo que a ornamentação de navios na invasão de Troia, descrita por Homero, teria usado o método.

– No passado a encáustica esteve ligada à sublimidade. Proponho para que hoje se siga a linhagem, explicitando nossas religiões contemporâneas, o culto ao imediatismo, ao consumismo, ao capitalismo e sobretudo ao egoísmo: o imenso vazio de sentido – propõe Fernanda.
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Fonte: ZH online, 04/05/2014

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