sábado, 3 de maio de 2014

David King: "O tempo para duvidar da ciência já passou"

LUZES Sir David King num hotel em São Paulo. Ele diz que é preciso separar a crise climática da falta d’água  no Estado (Foto: Alexandre Severo/ÉPOCA)

O representante do governo britânico para as mudanças climáticas diz que não faz sentido questionar os cientistas. E defende até a energia nuclear para reduzir as emissões

Sir David King é uma espécie de embaixador científico britânico. Diretor de pesquisas químicas na Universidade de Cambridge, já foi conselheiro-chefe de vários governos. Agora, sua missão é correr o mundo em nome do Ministério de Relações Exteriores britânico, angariando apoio para um acordo que reduza as emissões de poluentes responsáveis pelas mudanças climáticas. King visitou o Brasil na primeira semana do mês. Falou com o governo, ONGs e empresários sobre as recomendações dos últimos relatórios do painel científico do clima da ONU, o IPCC. Para evitar catástrofes climáticas que inundariam o Reino Unido, King defende até a energia nuclear e o gás de xisto.

ÉPOCA – São Paulo enfrenta a pior crise de água já registrada. Segundo os cientistas, isso não é um efeito do aquecimento global. A previsão é que as mudanças climáticas gerem verões mais chuvosos. Como lidar com isso?
David King –
Precisamos ter muito cuidado. Nunca devemos criar um caso quando ele não existe. Porque, senão, você fica vulnerável. É preciso dizer claramente que a seca não tem relação com as mudanças climáticas. O impacto é ruim por causa dos que tentam desacreditar a ciência do clima. Eles podem se aproveitar disso.

ÉPOCA – O IPCC acaba de publicar um novo relatório sobre mudanças climáticas. A mensagem é mais forte, mas a resposta da sociedade não. Por quê?
King –
Parte do problema é da própria mídia. Ela gosta de coisas novas, e mais um relatório não a impressiona. A notícia é tão séria que pode ser vista como a maior ameaça que a civilização já enfrentou. Mas temos uma crise econômica em muitos países, e sinto que a mensagem chegou no momento errado. Os cientistas fizeram um trabalho hercúleo. Comunicar esse desafio provavelmente vai além deles. No Reino Unido, desenvolvemos um centro independente do governo e da mídia, que apresenta material sobre todos os assuntos referentes à ciência. É comum que os cientistas trabalhem num nível difícil de entender para o público. É preciso comunicadores para fazer isso.

ÉPOCA – Na última edição do relatório do IPCC, de 2007, muitos estavam impressionados com o Furacão Katrina (de 2005). Grandes eventos climáticos podem aumentar a sensibilidade do público?
King –
Não há dúvida. Na Rússia houve uma mudança completa da opinião pública sobre mudanças climáticas. O presidente Vladimir Putin costumava dizer que talvez as mudanças climáticas fossem boas para o país. Mas eles tiveram ondas de calor muito severas. Houve mortes e danos materiais com derretimento do permafrost. Agora, perceberam que as mudanças climáticas desafiarão o modelo de vida atual. O presidente Putin anunciou que a Rússia reduzirá suas emissões em 27% até 2020, e as pesquisas de opinião mostram que os russos estão preocupados com as mudanças climáticas. Olhe para o impacto da tempestade Sandy (de 2012), em Nova York. Nunca antes um furacão chegou tão ao norte quanto Nova York, com tanta ferocidade. Tome o tufão Hayan (de 2013), nas Filipinas. Cada vez que há um evento extremo, soa um alarme. Mas há outro aspecto. As pessoas estão quase desistindo de esperar que a comunidade internacional responda à altura. Na reunião de Copenhague (parte da negociação internacional, em 2009), havia alto grau de expectativa de que seria aprovado um novo acordo internacional para reduzir as emissões. Isso não aconteceu. O público só voltará ao assunto quando vir que a comunidade política começa a tomar ações firmes. Em Lima, neste ano, será muito importante. A reunião em Paris, em 2015, é crítica. Não podemos ter um novo Copenhague.
ÉPOCA – O senhor foi nomeado representante especial de mudanças climáticas pelo Ministério de Relações Exteriores. Por que o Reino Unido está tão empenhado nisso?
King –
O risco das mudanças climáticas para as ilhas britânicas é muito severo. Somos um Estado insular. Fizemos um relatório em 2004 com cientistas, economistas e pesquisadores. Esse relatório mostra que, num cenário de manutenção das emissões atuais, não seremos capazes de defender nossa costa no final do século. Cidades como Londres estão ameaçadas por enchentes, tempestades e pela elevação do mar. No último inverno no Reino Unido, sofremos as piores enchentes de nossa história. Felizmente, como isso já fora relatado em 2004, preparamos nossas defesas. Mas nos próximos anos, se o clima continuar a mudar no ritmo atual, não poderemos evitar o pior. Por isso, precisamos nos mobilizar para que, de alguma forma, a gente consiga um acordo global. É por isso que o governo britânico foi o primeiro a se comprometer com um tratado para 2015. Reduziremos 80% das emissões até 2015. Transformamos isso em lei. É claro que eu reconheço que todos os países estão ameaçados, de uma forma ou de outra. É por isso que não podemos desistir.

ÉPOCA – Alguns críticos afirmam que a espécie humana já enfrentou mudanças climáticas e tempos mais quentes. E conseguiu se adaptar. Por que seria diferente agora?
King –
O que você acabou de dizer não é científico. Milhares de cientistas especializados em clima conhecem bem o paleoclima (o clima da Pré-História). Agora, temos níveis maiores de gases de efeito estufa na atmosfera que nos últimos milhões de anos. Não é uma questão sobre se a Europa estava mais quente na Idade Média, sobre se a Groenlândia já foi verde. Cerca de 99% dos cientistas dizem que estamos 95% certos de que o aquecimento das últimas décadas é resultado do comportamento humano, causado pela queima de combustíveis fósseis e derrubada de florestas. Precisamos ser inteligentes sobre isso. É hora de analisar os riscos e avaliar o que fazer para reduzir os danos. O tempo para duvidar da ciência já passou.
ÉPOCA – Como a exploração do gás de xisto dos Estados Unidos se encaixa neste mundo que precisa diminuir a dependência do carbono, principal causador das mudanças climáticas?
King –
O gás de xisto é transitório. Sua queima emite menos gás carbônico que o carvão. Isso é importante para os EUA cumprirem a meta de redução de 17%, comparando os níveis de 2005 e 2020. Mas o gás de xisto não é solução a longo prazo. Nem para todos os países, que não têm as reservas americanas.

"Londres está ameaçada por enchentes, tempestades 
e elevação do mar"
 
ÉPOCA – O Brasil tem uma geração elétrica limpa graças à energia hidrelétrica. Novas usinas enfrentam resistências por problemas sociais e desmatamento. Como optar?
King –
Não sou a pessoa certa para dizer como o Brasil deve lidar com seus desafios sociais, mas trarei um argumento geral. Os brasileiros conseguiram diminuir o desmatamento em 80% desde 2004. Em termos de gás carbônico por pessoa, é uma queda de 16 toneladas por pessoa para 6,5. Desejaria que os brasileiros estivessem orgulhosos desse esforço e se colocassem nas negociações internacionais como exemplo para outras nações. Ainda há um longo caminho a percorrer. A taxa de desmatamento atual, de mais de 7.000 quilômetros quadrados por ano, é muito grande. Mas o Brasil construiu um sistema de observação de florestas por satélite que deveria ser usado em todo o mundo. Tenho muito respeito pelo que o Brasil fez. Claro que há muitas questões sociais. Mas nenhum país quererá deixar para seus netos os piores impactos das mudanças climáticas. Se isso é tratado como prioridade, merece aplausos.

ÉPOCA – Qual o papel da energia nuclear para gerar energia sem emitir gás carbônico?
King –
A resposta sobre se devemos usar energia nuclear depende de onde você está no mundo. Refiro-me a questões políticas e geológicas. Você não deve usar energia nuclear num local com alto grau de atividade sísmica. Essa é a questão geológica. A política: duvido que encorajaremos o Irã a construir usinas nucleares. Venho defendendo novas usinas nucleares desde 2002 e, no próximo ano, começaremos a construir duas na Grã-Bretanha. Acredito que estamos no começo de um renascimento da energia nuclear no Reino Unido.

ÉPOCA – Mesmo depois de Fukushima?
King –
Sim. Avaliamos o que aconteceu em Fukushima e não acreditamos que haja risco equivalente no Reino Unido. A opinião pública também mudou. Imediatamente após Fukushima, o apoio às nucleares caiu de 60% para 30%. Hoje, está ainda maior, cerca de 65%. O debate foi feito na imprensa. Temos regulações bem severas e estamos convencidos de que será seguro. Sabe quantas pessoas morreram por exposição à radiação em Fukushima? Zero. Sabe quantas pessoas morreram na indústria do carvão, apenas nesta semana? Cerca de 100. A fonte de energia mais segura criada pelo homem, em termos de fatalidades por kilowatt gerado, é a energia nuclear. Mesmo considerando Fukushima e os outros dois grandes acidentes nucleares em Chernobyl e Three Mile Island.
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Reportagem por BRUNO CALIXTO E ALEXANDRE MANSUR
01/05/2014 07h00 - Atualizado em 01/05/2014 09h25
Fonte:  http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/blog-do-planeta/noticia/2014/05/bdavid-kingb-o-tempo-para-duvidar-da-ciencia-ja-passou.html

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