Gaudêncio Torquato*
O pequeno MC Pedrinho está bombando nas redes sociais
com Dom Dom Dom, música que faz referência a sexo oral. (MCs são
designados os cantores de funk, os "mestres de cerimônias", responsáveis
pela condução e ritmo da festa). O sucesso desse menino de 11 anos
deriva não só do fato de enveredar pelo gênero que anima bailes das
galeras jovens das periferias, mas pelo inusitado feito de fazer ecoar,
com seu timbre fino de voz, uma letra cujo fim do refrão é impublicável.
A dissonância que se poderia enxergar entre a idade do artista e a
carga de significados do funk pesadão parece proposital para chocar
ouvidos menos acostumados às nuances da linguagem desse gênero. Pedro
Maia faz sucesso. Há dias, outro menino, também de 11 anos, Bernardo
Boldrini, foi assassinado pela madrasta com uma injeção letal no braço
esquerdo. Sobre o corpo depositado numa cova foi jogada soda cáustica,
para acelerar o processo de decomposição. Os garotos, da mesma idade, de
origens e classes sociais distintas - Pedrinho, filho de uma doméstica;
Bernardo, filho de médico - traduzem o espírito do tempo em nossos
trópicos.
O embalo do primeiro se deve às redes sociais, que lhe proporcionaram
mais de 1 milhão de acessos no YouTube, canal aberto às invenções,
ações espetaculares, performances curiosas, movimentos escatológicos e
assemelhados de tantos quantos intencionam sair de casulos para adentrar
os vãos do Estado-espetáculo. Seu funk, na esteira da modalidade que a
ginga carioca recriou nos morros para enaltecer comandos de gangues,
drogas e armas, não lembra em nada o swing que James Brown adotou, nos
idos de 1960, para tornar o estilo dançante. Mas o caráter desse ciclo
não tão heroico que estamos vivendo faz do menino Pedrinho uma
celebridade, tirando-o dos arredores da Vila Maria, onde mora, para
ganhar os aplausos e a boa grana do show business.
O saracoteio do funqueiro mirim nas ondas da música erótica, letras
sem sentido e batidas rápidas, por uns considerada lixo eletrônico de
apologia ao crime, se encaixa na "maré do niilismo", que Ortega Y Gasset
já vislumbrava em meados da terceira década do século 20. Parafraseando
o apocalíptico pensador espanhol, para quem "sem um novo poder
espiritual" será inevitável uma catástrofe, esse tipo de manifestação
cultural corrobora a sensação de que o "imoralismo avança" puxando uma
legião de pregadores da extrema vulgaridade.
Sementes do declínio moral se espalham nas searas dos costumes, na
esteira do embrutecimento da vida cotidiana, simbolizado por formas de
comportamento antissocial, como uso de drogas, criminalidade e
violência. Os valores tradicionais fenecem. Os conflitos se expandem.
Encolhe-se o "capital social", conceito que, na visão do cientista
político Samuel Huntington, é a equação da confiança e do respeito, dos
direitos e do convívio harmonioso entre grupos.
Tal leitura, que se aplica aos mais diferentes Estados democráticos,
ganha ênfase por aqui em função do poder corrosivo que, nos últimos
tempos, devasta a paisagem institucional. A política escancara uma
torrente de escândalos. A gestão pública perde eficácia. A dinâmica
social puxa contingentes de baixo para morar nos andares de cima da
pirâmide, mas deixa para trás valores tradicionais que formam a
argamassa da cidadania, como solidariedade, respeito aos velhos e
crianças, lealdade, amor ao trabalho, culto à família, verdade,
honestidade, senso do dever. Muitas leis entram no lixo todos os dias.
Dribles e firulas dão curvas na estrada da ordem. A educação não prima
em valorizar critérios que poderiam ajudar os jovens a preservar o corpo
moral.
No deserto dos valores, o nivelamento cultural tende a se dar por
baixo. Os comportamentos obedecem à liturgia da mimese. Imitam-se
gostos, adereços, gestos, danças, roupas de atores e atrizes de novelas.
Há propensão para um "fazer extravagante", forma de chamar a atenção,
algo como trejeitos e esgares que dão medo ao próprio Drácula. No
diapasão da arte musical, as variações melódicas ganham a escala de uma
"nota só". A frase gritada (ou urrada?) é melhor que o texto cantado. A
estética capilar, esquisita e policromática, abriga logotipos de cabelos
espetados com cola, indicação de desejo de exibir um "diferencial de
imagem". Esse palco leva as galeras à catarse. O histerismo anima as
festas.
Por isso mesmo, Pedrinho está bombando. Sob os cuidados de um
empresário que comanda seus passos. Afinal, $$$$$ é o que interessa. O
menino irá longe? A mãe quer ver o rebento coberto de aplausos e de
cofrinho cheio. Mas garante não gostar (?) que ele cante o refrão
pornográfico em sua frente. Já o Ministério Público (MP) lembra que ele
pode cantar o que quiser, sob endosso de uma especialista em
sexualidade, para quem "meninos na idade do Pedrinho já falam de sexo
entre si". E assim rola o show business.
Bernardo Boldrini, o outro menino, era problemático. É o que se dizia
dele. O pai não lhe dava atenção. A mãe biológica, segundo a Polícia,
se matou em 2010. A madrasta, diz-se, estaria cobiçando a herança.
Enganou o enteado levando-o para fazer uma consulta com uma "mãe de
santo". A linguagem do ritual é de arrepiar. Santo, benzer, rezar.
Palavras que expressam Hosana nas alturas para salvar o menino. Que
desfaçatez. Armava-se a trama do assassinato. Chama a atenção o fato de o
garoto ter pedido o apoio do MP para ser acolhido por outra família.
Não foi atendido. Tudo isso entra na arena da banalização da maldade,
reforçada por ações (inações) de órgãos de defesa da sociedade,
governantes e representantes. Como se explicam, por exemplo, os 3 mil
casos de pessoas enterradas como indigentes em São Paulo, apesar de
portarem documento de identidade? Como se explica o despacho de levas de
haitianos para São Paulo e outras cidades, sob decisão unilateral do
governo do Acre? Onde estão os entes governativos?
O espírito do nosso tempo é de trevas!
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*Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político e de comunicação. twitter@gaudtorquato
Imagem da Internet
Fonte: Estadão online, 04/05/2014
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