José Alexandre S. Crippa*
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Canabinoides. Compostos têm mostrado forte potencial terapêutico para diversas doenças
Na corda bamba, debate sobre maconha deve estar respaldado em dados científicos
Qualquer um se lembra do que estava fazendo no dia 11 de setembro de
2001, por ocasião do ataque terrorista ao complexo do World Trade Center
na cidade de Nova York. O que é menos conhecido é que, numa manhã de
agosto de 1974, o jovem equilibrista francês Philippe Petit cruzou sem
autorização os 43 metros que separavam as Torres Gêmeas. Com uma vara de
oito metros de comprimento, Petit atravessou o espaço entre os dois
edifícios oito vezes, ao longo de 45 minutos - sem nenhum cabo de
segurança.
Olhando esses dois eventos, alguém poderia afirmar que ficar dentro
de um escritório é algo perigoso, mas atravessar um prédio a mais de 400
metros do solo é extremamente seguro. Essa observação obviamente não é
correta. Assim como seria equivocado afirmar que a maconha é segura pelo
fato de ter usado a droga previamente e não ter tido complicações.
Igualmente, o argumento de que uma simples tragada levará à dependência
da maconha equivale a dizer que beber uma taça de vinho levará ao
alcoolismo. Por isso, todo debate a respeito da legalização da maconha
deveria necessariamente estar respaldado em dados científicos empíricos
baseados em experimentos clínicos e em estudos epidemiológicos.
Maconha é o nome popular da planta Cannabis sativa, que
possui centenas de componentes, dos quais aproximadamente 80 são
denominados "canabinoides", por atuarem nos receptores cerebrais com
esse mesmo nome. Nos anos 1960, as estruturas químicas dos principais
canabinoides foram descritas pelo professor Raphael Mechoulam, de
Israel, incluindo o delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), o componente da
planta responsável pelos efeitos psicoativos da droga, como alterações
na percepção, orientação e controle motor.
Entretanto, vários outros canabinoides conhecidos, muitos deles com
potencial terapêutico, não apresentam esses efeitos. Um exemplo é o
canabidiol (CBD), um canabinoide que possui diversos efeitos opostos aos
do THC, como efeito ansiolítico e antipsicótico. Diferentemente do THC,
o uso do CBD isoladamente não apresenta os efeitos típicos do uso da
maconha. Nosso grupo e outros grupos brasileiros estão na vanguarda nas
pesquisas sobre o potencial terapêutico dessa substância. Conduzimos
pesquisas do CBD na doença de Parkinson, esquizofrenia, ansiedade,
distúrbios do sono e dependência de drogas, entre outras condições.
Já na década de 1970, em estudos colaborativos, Mechoulam e o
professor Elizaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), observaram em animais e em humanos os efeitos
anticonvulsivantes do CBD. Entre novas evidências, o caso da menina com
quadro de epilepsia refratária decorrente de rara doença genética, que
recentemente ganhou notoriedade na mídia por ter melhorado com o uso do
CBD, reforçam essas observações pioneiras.
Dessa forma, é importante ficar claro que os canabinoides são
compostos presentes na maconha, mas os dois não são equivalentes. Um
medicamento que combina CBD e THC já está disponível para tratamento de
esclerose múltipla em países como Canadá, Espanha e Reino Unido.
Entretanto, é de se lamentar que, por desinformação ou má-fé, o efeito
benéfico dos canabinoides seja usado como justificativa para a
legalização da maconha para fins recreativos.
Sabe-se que a maconha é a droga ilícita mais utilizada no mundo e seu
consumo pode levar algumas pessoas a desenvolver sintomas psicóticos
transitórios, como alucinações, delírios e alterações cognitivas. Cada
vez mais estudos controlados sugerem que o uso recreativo crônico,
dependendo da dose, quantidade e precocidade do início, pode produzir
alterações cognitivas permanentes e facilitar o desenvolvimento de
transtornos psiquiátricos em usuários vulneráveis. Estudos
epidemiológicos prospectivos de longo prazo realizados em alguns países
sugerem uma associação entre uso crônico de maconha e maior risco para o
desenvolvimento de esquizofrenia. Atualmente, a síndrome de abstinência
da maconha é uma condição reconhecida e alguns usuários podem vir a
desenvolver dependência, cujos tratamentos disponíveis demonstraram
eficácia limitada.
Em colaboração com grupo do King’s College, de Londres, publicamos
estudos mostrando as áreas cerebrais onde o THC e o CBD atuam
individualmente. Mais recentemente, revisões da literatura apontam que o
uso crônico e recorrente de maconha pode levar a alterações no
funcionamento e na estrutura cerebral - particularmente no cérebro em
desenvolvimento, ou seja, entre jovens e adolescentes. Um estudo
publicado na semana passada sugere que essas alterações ocorrem mesmo em
usuários ocasionais, achado que ainda necessita ser reproduzido.
Complicações clínicas como câncer, problemas cardíacos, respiratórios e
imunológicos também foram associados ao uso da maconha inalada.
Nesse cenário, em reunião científica no mês passado na qual proferi
conferência a convite da presidência do Uruguai, não foram postos em
debate alguns aspectos cruciais que seriam necessários, dada a recente
legalização da droga naquele país. Faltou discutir como será oferecida à
população informação dos conhecidos problemas do consumo, incluindo
aspectos centrais como o uso e direção e de que modo se dará o
tratamento para aqueles que desenvolverem dependência e suas
complicações.
Os compostos canabinoides têm demonstrado incrível potencial
terapêutico para diversas doenças e acredito que poderão ajudar milhões
de pessoas no mundo todo, inclusive no Brasil. A ampliação dos ensaios
clínicos avaliando segurança, faixa de dose e extensão de eficácia é
essencial. A consequente regulamentação do uso dos canabinoides poderá
levar a importante redução de sofrimento e melhor qualidade de vida a
portadores de diversas doenças e transtornos. Por outro lado, o debate
sobre a legalização da maconha para fins recreativos deveria ocorrer
após alguns aspectos serem garantidos: primeiro, a sociedade ser
informada de modo claro, sem alarmismo, do atual conhecimento científico
dos riscos do uso da maconha; segundo, termos certeza de que todos os
usuários poderão ter acesso a tratamento adequado no caso de
complicações. Isso tudo desprovido do viés político ou ideológico, que
só aumenta a confusão e posterga decisões concretas. Caso contrário,
continuaremos na corda bamba da desinformação, e sem nenhum cabo de
segurança.
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* JOSÉ ALEXANDRE S. CRIPPA É PROFESSOR DA FACULDADE DE MEDICINA DE RIBEIRÃO PRETO DA USP E MEMBRO DA INTERNATIONAL CANNABINOID RESEARCH SOCIETY
Fonte: Estadão online, acesso 04/05/2014
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