Papa Francisco na praça São Pedro, em outubro. Vaticano tem ficado lotado nos últimos nove meses
Quebra de tabus mostra que o mundo mergulha de fato numa fase de grandes transformações
Uma
das transformações mais significativas acontece na Igreja Católica
Apostólica Romana. Com suas doutrinas seculares, ela também não ficou
imune a tantas mudanças em diversas esferas.
A mesma que ajudou a levantar e derrubar reis e rainhas, que fez a
inquisição para julgar e condenar com suas leis, que foi ligada ao domínio do conhecimento,
elege agora um
jesuíta latino-americano para assumir a função de papa, que chegou, vale
lembrar, a ser chamado
recentemente de marxista por ultra-conservadores americanos, depois de
fazer duras críticas ao nosso sistema capitalista, ao consumismo e à
idolatria do dinheiro - na primeira exortação apostólica, Evangelii Gaudium.
Em resposta, o Papa Francisco disse que considera a ideologia marxista
"equivocada", mas que não se sentiu ofendido por ter sido chamado como
tal. "Na minha vida conheci tantos marxistas bons como pessoas que não me ofendo", disse o Pontífice ao jornal La Stampa.
Jorge
Mario Bergoglio, assim que assumiu o papado, em março de 2013, deu
sinais de que mudanças poderiam surgir ao recusar os luxuosos cômodos do
Palácio Apostólico no Vaticano e escolher
a Casa de Santa Marta, para ficar “junto com os outros membros do
clero”. É lá que hoje o papa costuma tomar café da manhã, além de
celebrar missa para os funcionários locais. Dispensou também o carro
oficial e os seguranças. No início de dezembro, eram crescentes os
rumores de que ele costuma "escapar" do Vaticano durante a noite,
vestido como padre, para encontrar pessoas necessitadas de
Roma. Autoridades do Vaticano negaram.
O novo chefe supremo
da igreja católica assumiu depois da renúncia de Bento XVI, a primeira
dos últimos 600 anos. Entre as atitudes que soam como início de mudanças
profundas, Francisco formou uma comissão para reformar a cúria, outra
para acompanhar as operações do Instituto para as Obras de Religião
(IOR) e declarou que os homossexuais não deveriam ser julgados ou
marginalizados. "Se alguém é gay e busca o Senhor de boa fé, quem sou eu
para julgar?", comentou. Medidas e palavras impensáveis para uma Igreja
Católica de séculos atrás.
Entre as publicações que lhe renderam o
título de personalidade do ano está a revista "The Advocate", a mais
tradicional da comunidade gay norte-americana. Quando foi eleito
personalidade do ano pela Time, o secretário de Estado do
Vaticano, padre Federico Lombardi, afirmou que o título "é um sinal
positivo" que demonstra "entendimento" das mensagens religiosas e morais
do papa.
Historiadores e sociólogos especializados no estudo da
igreja ajudam a esclarecer um pouco as mudanças que essa instituição vem
passando e o que elas significam para a sociedade, e também para a
própria instituição. Eles ressaltam a retomada de uma maior força, até
com ateístas e agnósticos. Até pouco tempo taxada de atrasada e/ou
engessada, a igreja agora percebe um crescimento rápido de fiéis e
simpatizantes, ao falar de questões que antes não encontravam voz na
entidade. O Vaticano tem ficado lotado de pessoas nos últimos nove
meses, motivadas pelo discurso inovador do papa Francisco, acredita-se.
Mario
Jorge da Motta Bastos, doutor em História Social pela USP e professor
da Universidade Federal Fluminense (UFF), explica sobre a presença da
Igreja Católica na Idade Média. Vertente da historiografia francesa,
ligada a Alain Guerreau, aponta que a supremacia da Igreja naquele
período seria decorrência de vários níveis: controle do espaço - pela
multiplicação dos templos, criação das paróquias e inserção em
comunidades; controle do tempo - com os sinos marcando as principais
jornadas diárias; controle da cultura erudita - com atuação
nas universidades; controle dos principais rituais cotidianos e ritos de
passagem - como o casamento; e sacralização da estrutura social.
"Esta
instituição tem séculos de existência, ao longo dos quais instituiu uma
base material incomensurável, articulou-se com e reproduziu-se no
interior de sistemas e estruturas de poder diversas. Se, na Idade Média,
foi enorme o seu papel na sacralização do sistema feudal, também são
clássicas as análises que articulam o cristianismo - e não só a sua
vertente protestante - à implantação do sistema capitalista. De qualquer
forma, a hegemonia gozada em toda a Idade Média sofreu consideráveis e
sucessíveis abalos relacionados, é claro, com a Reforma protestante e a
consecutiva proliferação de vertentes religiosas. De minha parte,
contudo, creio que um abalo importante foi decorrente do processo de
'perda de potência sagrada', de laicização das sociedades
contemporâneas, que pôs em xeque a ascendência da religião como
instrumento incontestável e socialmente generalizado de compreensão do
mundo", comentou.
Para
Mario Jorge, a escolha de Bergoglio como papa foi "bastante
consequente", devido à crise institucional e de crença que afetava a
igreja. "A guinada à direita do episcopado de João Paulo II teve como
efeito colateral o recuo do catolicismo nas áreas pobres dos países
periféricos. Bento XVI foi uma aposta na sequência daquela orientação,
que se mostrou equivocada e redundou na sua renúncia. Esse quadro geral
ajuda a entender a escolha de um latino-americano - frente há muito mais
importante, no que se refere à quantidade de crentes, de sustentação da
Igreja do que a própria Europa".
Maurício Vieira Martins,
professor do Departamento de Sociologia da UFF, destacou que existe
hoje um debate entre os especialistas tentando explicar os diferentes
motivos que levaram o papa Francisco a assumir posições próximas ao que,
num outro momento da Igreja Católica, ficou conhecido como uma opção
preferencial pelos pobres. "A rigor, ainda não existe uma resposta
segura para isso, até porque o início do pontificado de Bergoglio é
muito recente."
O professor considera errôneo afirmar um suposto
caráter marxista do papa, por várias razões. Suas declarações contra uma
"economia de exclusão e desigualdade" representam o mínimo que se
espera de um homem comprometido com o bem estar da população mais pobre.
"Em outras palavras, podemos dizer que não é o papa que é marxista, mas
sim que ele está lidando com adversários tão conservadores que se
sentem ofendidos mesmo com iniciativas moderadas de redistribuição da
riqueza social", ressaltou.
Ivo Lesbaupin, professor na UFRJ,
graduado em Filosofia e doutor em Sociologia pela Université de
Toulouse-Le-Mirail, da França, acredita por sua vez, que a igreja está,
sim, totalmente diferente. Até a metade do século 20, ressalta, ela
tinha papel de hegemonia cultural no ocidente inteiro e parte do oriente
médio, e extremo oriente. "Ainda tem um poder da igreja, de um modo
geral, em relação ao curso da nação, aparelho jurídico, a certa datas
comemorativas".
No início da década de 1960, explica Lesbaupin,
aconteceu um processo de reforma na igreja que abre as portas para o
diálogo com as ciências, com as demais igrejas cristãs, com judeus e
muçulmanos, minimização do discurso monárquico por excelência. "Isso
flexibilizou um pouco mais a igreja. Se ela não tinha ainda a coragem de
dialogar com radicalidade sobre assuntos como aborto, homossexuais,
pelo menos não tínhamos prática persecutória".
"Na metade da
década de 1980, no entanto, a igreja volta a algumas práticas, houve
moralização do discurso da igreja, mas aí o discurso já não era mais tão
audível", aponta. "Até que chega Francisco com ideia de diálogo da
igreja, do ecumenismo, com um novo assento não mais na moralidade, mas
na revolução afetiva, no serviço ao outro, que ganha alguma voz ainda
hoje, neste mundo de esfacelamento quase geral de alguns valores que até
o século 20 eram estáveis."
Questionado sobre se o discurso do
papa estaria em sintonia com o novo momento da Europa e Estados Unidos, o
professor responde que sim. Neste sentido, então, o papa tem dado lugar
de proeminência, com discursos sobre a desumanização do curso econômico
do mundo. "Ele não veio com uma resposta antiga, ele veio dizer que
temos que dialogar para dar conta de todo este absurdo."
Lesbaupin
ressalta que a igreja, em seu início, era altamente pobre, ligada a
populações excluídas do império romano, até que os romanos a assumiram e
formou-se a aliança entre poder civil e eclesiástico. No entanto, ele
acredita que há uma série de limitações das ações do papa, para que se
possa adotar mudanças grandes.
"A longo prazo, a gente não sabe
bem o que vai acontecer. Mas me parece que, se essa postura durar por
mais 10 anos, vamos começar a ver certas mudanças", disse Lesbaupin.
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Reportagem Jornal do Brasil Pamela Mascarenhas
Fonte: JB online, 01/01/2014
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