Durante seis anos, o filósofo, dramaturgo e romancista francês Alain
Badiou se dedicou à tarefa de reescrever a "República" de Platão. A
empreitada não se resumiu a traduzir o texto grego, mas a uma
atualização radical de seu tema, naquilo que o próprio Badiou denomina
"um experimento de química": o que ocorre quando uma obra composta há
mais de dois milênios é mergulhada em outro universo? O resultado é "A
República de Platão Recontada por Alain Badiou", lançado em 2012 e agora
traduzido no Brasil.
Badiou tem um fascínio particular por Platão. Outro de seus projetos é
a realização de um filme em Hollywood sobre a vida do pensador
ateniense. Desde que começou a falar publicamente sobre essa ideia, ele
já sugeriu que o elenco poderia incluir Brad Pitt, Meryl Streep e Sean
Connery. "Apesar de muito difícil, a filosofia é para todos. Como o
cinema é a arte de massas por excelência, parece ser o caminho para
mostrar o filósofo como alguém que vive de verdade, e não um barbudo
distante. E Platão teve uma vida muito interessante", diz Badiou, que
afirma já ter escrito dez sequências para um possível filme, de um total
de 20.
A "República" é o mais antigo dos textos filosóficos sobre política.
Escrito no século IV a.C., o diálogo se inicia com a questão de saber o
que é a justiça e contém algumas das passagens mais célebres do
discípulo de Sócrates, como o mito da caverna, uma metáfora sobre a
busca da verdade. Na nova versão, a caverna torna-se sala de cinema. A
tirania é chamada de totalitarismo. A sociedade ideal construída por
Sócrates e seus interlocutores aparece como comunismo. E os sofistas,
que na antiga Atenas eram os mercadores de opinião com os quais Platão
se digladiava, são transformados em jornalistas.
"O jornalismo também é uma forma de transmitir a ideia e a verdade",
diz o filósofo. "Mas a tentação sofística é enorme na mídia, como é no
mundo universitário, sem falar na política." E conclui: "A grande lição
de Platão é esta: a filosofia consiste em lutar contra o sofista que
está sempre à espreita em todos nós".
Nascido em Rabat, no Marrocos, em 1937, Badiou é professor na
Universidade Paris 8. Sua obra filosófica está publicada em dois grandes
volumes, "O Ser e o Evento" (1988) e "Lógicas dos Mundos" (2006). O
terceiro volume, que completa seu sistema, ainda não tem título e está
sendo redigido. O público amplo também conhece Badiou por sua militância
comunista de inspiração maoísta, expressa em diversos artigos e
opúsculos.
Valor: Sua versão da "República" faz pensar em Jorge Luís Borges, em particular, "Pierre Ménard, autor do Quixote".
Alain Badiou: Se não posso dizer que a empreitada
foi inspirada em Borges, certamente faz pensar nele. As alegorias de
Borges sobre a grande biblioteca, seu interesse pela multiplicidade das
línguas, do trânsito entre elas, o modo como constrói ficções
intemporais, o ar de romance policial linguístico... Um momento que
considero borgesiano na "República" é quando, no meu livro, Sócrates
fala de mim: "Badiou disse tal e tal". Esse é o tipo de montagem
ficcional que agradava a Borges.
Valor: A cidade ideal de Platão poderia ser
encarada como modelo abstrato, não fosse o fato de que ele tentou
implantar suas ideias como conselheiro de Dionísio de Siracusa. Em que
medida essas utopias podem ser perseguidas?
Badiou: É uma ilusão filosófica. Uma boa analogia é
com o Iluminismo. Voltaire estava persuadido de que podia influenciar
Frederico II da Prússia. Diderot foi dar aulas para a imperadora
Catarina da Rússia. É uma tentação irônica. O filósofo lúcido,
concentrado em seu pensamento, não se dá conta de que ser conselheiro
privado de um déspota não é o melhor meio de fazer triunfar a filosofia.
O déspota esclarecido é sempre mais déspota que esclarecido.
Em vez da aristocracia igualitária, como
prega Platão,
Badiou imagina a igualdade aristocrática, em que
cada um
tem acesso ao que há de melhor
Valor: Mas persiste a dúvida sobre a articulação entre pensar e agir.
Badiou: Quando se trata de política, estamos em
outra seara, não no conhecimento, mas na transformação efetiva das
relações sociais. Essas relações são construídas materialmente: quem
controla os recursos, gente muito determinada a defendê-los, inclusive
com violência. É preciso se engajar numa disciplina que não é a
filosofia. É ilusão pensar que podemos pôr a filosofia no lugar da
política ou vice-versa. A política tem princípios seus. Platão foi um
grande pensador do que a política poderia ser, mas não foi um político.
Não é em Platão que vamos encontrar a solução dos problemas políticos. O
personagem da política é o militante, que não é uma figura platônica.
Valor: O senhor associa a noção de comunismo à ideia de uma aristocracia alargada...
Badiou: É uma ideia presente em Platão, que serve
para mais do que o político. A cultura resulta dessa dialética entre o
que é comum e o que é "elevado". Trata-se de colocar aquilo que toma a
forma do aristocratismo no coração do comum. Platão busca realizar algo
como um comunismo no interior da aristocracia. Devemos inverter a
fórmula. Em vez da aristocracia igualitária, a igualdade aristocrática.
Fazer que cada um possa ter acesso ao que há de melhor na atividade
humana.
Valor: O comunismo do século XX não se parece em
nada com isso, mas o do século XIX muitas vezes reivindicou Platão;
outras vezes, o rejeitou.
Badiou: Os comunistas do século XIX tinham uma
relação complicada com Platão. O aristocratismo era algo que eles tinham
de combater. Mas muitos comunistas utópicos consideraram Platão um dos
primeiros comunistas. E é verdade. O que conta é a liberação da
capacidade máxima da humanidade no que ela comporta de possibilidades
criadoras. Num mundo estruturado pela concentração de capital, essa
liberação é impraticável.
Valor: O senhor, que escreveu um livro contra [o
ex-presidente francês Nicolas] Sarkozy, também falou em escrever contra
o atual governo [do socialista François Hollande]...
Badiou: Nas últimas eleições [em 2012], escrevi um
opúsculo cujo título era: "Sarkozy: pior que o previsto. Todos os
outros: prever o pior". Hoje, na política, há uma convergência, a
aceitação pura e simples de uma necessidade exterior que faz com que não
tenham nenhuma "ideia", no sentido platônico. Nenhum esquema de
transformação real da situação.
Valor: Falta o que aparece na sua versão da "República" como "acesso ao absoluto"...
Badiou: O absoluto não é uma ideia fixa, como se
acredita. Mas se nenhuma ideia, nenhum princípio, é absoluto, então não
há nem verdade, nem princípio. Em nome de tudo ser relativo, pode-se
mudar de opinião constantemente. É o que se vê no corpo eleitoral, com
declarações opostas, antes e depois das eleições. Como nada é absoluto,
isso é normal. Enquanto não se produzir o que chamo de "sacudida dos
eventos", algo que não seja redutível às maneiras de fazer da política
atual, não se passará nada além dessa decadência molenga. Isso só pode
ser interrompido por eventos, internos ou externos, que provocariam um
tal choque subjetivo que seria necessário fazer uma completa revisão dos
parâmetros. Estamos num daqueles momentos em que as coisas não dependem
da decisão dos atores.
Valor: Os movimentos de contestação que surgiram desde 2008 não chegaram a nada?
Badiou: Foram mais sintomas da crise que propostas
de transformação. Produziram proposições pouco radicais e foram
incapazes de formular alternativas globais. Foram insuficientemente
comunistas, no sentido etimológico: não radicalizaram o fato de que se
trata de retomar, em condições novas, a luta contra o sistema dominante.
Os jovens sentem que o mundo como está não convém. Mas entre isso e a
construção de uma política capaz de afrontar os inimigos temíveis que
comandam o sistema, e que seja capaz de fixar etapas, encontrando formas
de organização duráveis, há um abismo. Estamos no começo de uma longa
marcha histórica que pode ser marcada por episódios terríveis. A questão
que pouco a pouco se constitui é a da guerra, isto é, saber até quando a
globalização vai se desenvolver sem que suas contradições estourem. O
que vai sair disso tudo, não sei, mas afirmo que a única alternativa
seria aquele comunismo aristocratizado.
Valor: O que cresce hoje é o oposto: uma extrema-direita anti-intelectual.
Badiou: O fascismo é a ponta extrema da consciência
de crise do capitalismo. A aparição de grupos nacionalistas
fascistizantes é parte do panorama. A fraqueza extrema do pensamento
revolucionário é notável. Está sensivelmente mais fraco que nos anos
1930, quando já era limitado. Estamos numa conjuntura precária, um
período intervalar. A antiga concepção revolucionária esgotou suas
virtudes e a nova mal começou a nascer. Como sempre, as ideias novas
estão atrasadas em relação ao conservadorismo.
Valor: Como o senhor chegou à ideia de que deveria trabalhar o texto dessa maneira?
Badiou: É um texto que conheço como se conhece um
amigo. Fiz diversos cursos sobre ele e me dei conta, há uns dez anos, de
que devia fazer algo diferente: mergulhá-lo na experiência
contemporânea, no meu próprio universo, e ver o que dá. Foi como um
experimento de química. Mergulhar um corpo em outro meio e ver o que dá.
Valor: O senhor imagina que esse tipo de iniciativa possa se tornar um gênero filosófico?
Badiou: Percebi que esforços parecidos foram feitos
com outros textos da Antiguidade. Não fui o único, a não ser para
textos completamente filosóficos. Houve uma nova tradução das
"Confissões" de Agostinho [por Frédéric Boyer], e também das
"Metamorfoses", de Ovídio. Talvez a primeira tentativa tenha sido a de
[Pierre] Klossowski, que buscou traduzir de maneira completamente nova a
"Eneida" de Virgílio. Há uma pequena corrente, como uma nova maneira de
visitar textos antigos, aproximando-os da língua viva. É uma aventura
que indica algo, a busca de uma nova relação com os textos antigos.
Valor: No seu caso, redescobre-se a perenidade da questão da justiça, ponto de partida da República de Platão.
Badiou: Platão foi o primeiro a escrever um grande
texto sobre a justiça, um texto que foi meditado por séculos. Ele o fez
nas condições da civilização grega. É um texto escrito em grande medida
no espetáculo da decadência da cidade-Estado grega. Mas também nos
permite ler a decadência da nossa própria sociedade. Com ajustes,
pode-se fazer viver o pensamento de Platão. O que marca a filosofia é
que as questões não mudam ao longo dos milênios. Tentar fazer uma
sociedade justa é uma questão que continua contemporânea. O problema é
explicitar a questão e seu valor eterno, além das circunstâncias
particulares. Empreitadas como a minha buscam preservar o caráter
indispensável da reflexão filosófica sobre a justiça. Poderíamos dizer
que é fazer justiça à justiça tratá-la assim, em vez de como um
monumento que visitamos de vez em quando.
Valor: Alfred North Whitehead afirmou que toda a filosofia consiste em notas de rodapé a Platão. O senhor concorda?
Badiou: Talvez não dissesse isso de toda a
filosofia, mas a ideia de que ela foi escrita à margem de Platão me
parece verdadeira. Mesmo aqueles que se creem inimigos mortais de Platão
esquecem que o próprio Platão pôs em cena seus maiores críticos. Hoje,
conhecemos os principais sofistas a partir dos retratos extraordinários
que Platão faz. Platão é o ancestral de seu próprio pensamento
racionalista, claro, mas foi também o principal encenador das filosofias
adversárias: os céticos, sofistas, niilistas. Foi o primeiro a pôr em
cena pensadores tirânicos, que chamaríamos hoje totalitários. Quando
lemos textos de Platão, às vezes não sabemos quem está falando. Em
muitos diálogos, quem defende expressamente o pensamento de Platão não é
mais Sócrates. Podemos dizer que os elementos borgesianos já estão em
Platão.
Valor: A figura histórica de Platão foi posta em categorias rígidas: o antidemocrático, o inimigo das artes, o racionalista.
Badiou: Escrevi o livro pensando na história
contemporânea do platonismo. Platão foi o inimigo de quase todas as
correntes filosóficas do século XX. Quem começou essa tradição foi
Nietzsche, ao dizer que a Europa padecia da "doença Platão". Correntes
opostas, como a filosofia racionalista analítica, que domina as
universidades americanas, e a filosofia oficial do marxismo-leninismo
soviético, estavam de acordo em um ponto apenas: ser contra Platão. A
definição oficial soviética de Platão era: ideólogo dos proprietários de
escravos. Os existencialistas viam em Platão o inimigo particular,
porque era o teórico da essência. O juízo sobre ele, nessas escolas, é
parcial, fragmentário e muitas vezes indefensável. Mas, logo no começo
da história da filosofia, Platão põe em ação uma enorme gama de
possibilidades. Todos que tentaram reduzir Platão a um sistema falharam.
Pode-se sempre encontrar um diálogo que contradiz outro. É um
pensamento em movimento.
"A República de Platão Recontada
por Alain Badiou"
Tradução: André Telles. Zahar.
384 págs., R$ 59,90
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REPORTAGEM POR DIOGO VIANA
Fonte: Valor Econômico online, 02/04/2014
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