sábado, 3 de maio de 2014

HAY GABO PARA TODOS

 J.J. Camargo*
 
Gabriel García Márquez viveu no México a quase totalidade de seus últimos 30 anos, mas nunca abriu mão de uma casa de pedra antiga, construída com os cotovelos na janela do mar do Caribe, em Cartagena de Las Índias. Durante um Congresso Panamericano lá realizado, recebi um telefonema de um amigo comum, Fidel Camacho, o cirurgião de Bogotá que o curou de um câncer de pulmão, nos anos 1980, e se tornou muito querido dele.

Na chamada havia uma provocação: “O Gabo está na cidade, estive com ele ontem, falei de ti e do quanto gostas dele e ele me pediu que te convidasse para jantarmos hoje. Não sei se tens algum compromisso?!”.

A resposta tinha uma ironia proporcional: “Deixe-me dar uma checada na minha agenda!”.

Inesquecível aquela noite, com as histórias regadas a vinho tinto, a memória exigida no limite para a recuperação dos detalhes, a valorização do nome dos personagens, enfim uma espécie de ensaio para a produção das memórias que era o projeto final da sua vida.

É provável que já estivéssemos meio bêbados, mas isso não invalida a emoção do abraço quando erguemos as taças para um brinde a Úrsula Buendía, a matriarca dos Cem Anos de Solidão, quando confessei que, para mim, ela era o maior personagem feminino da literatura.

Foi o momento definitivo na lembrança daquela noite, e pensei nele quando reli, um dia desses, uma frase maravilhosa do conto La Tercera Resignación (1947), em que ele descreveu êxtase assim: “Como si todos los pulmones da la tierra hubieran dejado de respirar para no interrumpir la liviana quietud del aire”, lembram?

Um grande colecionador de personagens, sem formação acadêmica, não tinha nenhum pudor de admitir que gostava de contar histórias, mas não aceitava falar de literatura porque não tinha uma ideia clara do que fosse.

Na ampla mesa com tampa de pedra polida estavam espalhadas dezenas de folhas soltas com anotações quase ilegíveis que, segundo Fidel, eram o tormento da velhinha da limpeza que não podia mudá-las de lugar porque só ele conseguia recuperar o que precisasse naquele caos.

A oficialização da morte de Gabo no dia 17 de abril não me doeu tanto quanto a entrevista do irmão mais moço quando anunciou, há uns três anos, que ele perdera a memória.

Soube-se depois que os amigos mais próximos foram muitas vezes convocados para ajudá-lo na elaboração do Vivir para Contarla, porque com frequência, fatos, datas e personagens entravam em angustiante conflito.

Provavelmente como salvo conduto ele assumiu que a vida não é o que gente viveu, mas sim o que gente recorda, e como recorda para contá-la.

Vários intelectuais e literatos de renome já dissecaram a obra de Gabo com a propriedade de quem, ao contrário dele, sabe o que é literatura.

Talvez tenha restado como pífio instrumento de homenagem para quem está sofrendo com a orfandade a lembrança de cinco frases definitivas:

“Um único minuto de reconciliação vale mais do que toda uma vida de amizade.”

“A pior forma de sentir falta de uma pessoa é estar ao lado dela e ter certeza que nunca poderá tê-la.”

“O segredo de uma velhice agradável consiste em assinar um pacto honroso com a solidão.”

“Ninguém pertence a um lugar enquanto não tem um morto debaixo da terra.”

“A sabedoria é algo que quando nos bate à porta, já não nos serve para nada.”
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* Médico.
Fonte: ZH online, 03/04/2014

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