quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Nunca lemos tanto

ROBERTO DAMATTA*
 
Nunca lemos tanto ou fomos tão amantes do Direito como agora. Não estou afirmando que os debates do STF foram vistos como jogos de futebol, mas afirmo sem medo de errar que a cada condenação dos trambiqueiros petistas, os nossos velhos corações, acostumados a uma imoral impunidade, batiam esperançosos.

Vimos com clareza quem atuou ou não, e percebemos a impossibilidade de julgar um ex-patrão ou os amigos. Entendemos por que o liberalismo inventou a fórmula ética chamada "conflito de interesse". A consciência dos papéis sociais, de que falava, entre outros, Shakespeare, com a terrível clareza da tragédia, mostra isso. Só há duas possibilidades: ou o papel comanda a pessoa ou a pessoa comanda o papel. Se houver um conflito entre a pessoa e o papel, não pode haver desempenho porque não há convicção - essa dimensão básica da ética que dispensa a polícia e a censura porque ela se enraíza na difícil capacidade de dizer não a si mesmo demandado pela democracia.

O julgamento engendrou, por outro lado, heróis. Um deles foi o procurador-geral da República. Outro foi o relator. Ele permitiu testemunhar o desmonte de um projeto de poder contrário à democracia e à condenação daqueles que - aristocraticamente - se imaginavam acima da lei por terem um certa biografia e professarem uma certa visão de mundo.

Hoje estamos lendo tudo sobre os "livros" que, na linguagem de Rose Noronha e dos seus asseclas, eram uma metáfora para os favores obtidos graças às tramas pessoais e partidárias.
A barganha de cargos do Estado mostra como os intérpretes do Brasil estavam enganados. Todos falam da oposição entre oprimidos e opressores, entre exploradores e explorados, entre senhores e escravos quando, de fato, o que se assiste ao longo da história é um contraste assombroso entre governantes e governados. Aqueles como donos do Estado por meio de um governo; estes pagando seus escritórios, motoristas, secretários, cartões corporativos, namoradas, ilhas da fantasia, obras, grandes cagadas, viagens, massagens, passaportes diplomáticos - o c... a quatro! - com o seu trabalho e impostos.

Nossa paixão pelo estado imperial e definitivo é tão grande que conseguimos inventar dentro do capitalismo o segmento dos "empreendedores oficiais". Os que por meio de suas relações usam os cargos públicos sem seguir a ética pública. Assim, em vez de empregarem seus cargos para aprimorar o setor pelo qual são responsáveis, eles os usam para "se arrumar". O familismo, o personalismo, as amizades, a simpatia e, hoje em dia, o partidarismo, ajudam a criar fortunas. Tudo, menos o mérito, os resultados e a competência, passa a ser a norma dos governos que cometem a perversão de opor de modo radical os que pagam os impostos - nós, os governados; e eles, os governantes, que tudo podem porque estão acima da lei.

Quando dona Rosemary Noronha diz que nada fez de errado, ela está falando a verdade. E quando nos indignamos com a quadrilha da qual ela era o centro, nós também estamos com a verdade. Todos descobrimos, sem termos lido Fernando Pessoa, essa dupla existência da verdade porque um dos dados da era "lulo-petista" é a revelação de uma ética dupla que, faz tempo, acentuei no livro Carnavais, Malandros e Heróis como sendo o traço capital do sistema brasileiro. Sempre tivemos uma norma moral interna para a "casa"; e outra, externa, para o povo governado tido como pobre ou pateta, que na "rua" ganha a "bolsa idiotice" e se conforma com uma ocupação predatória do Estado por um governo cujo centro é um projeto de poder.

Dir-se-ia que chovo no molhado. Mas, vejam bem: num mundo social com uma ética para os amigos e outra para os estranhos os dois lados estão absolutamente corretos. É precisamente por isso que há impunidade. Não é a impunidade que leva ao abuso do cargo público. É o fato de jamais termos enfrentado o problema das demandas pessoais face às exigências dos cargos públicos num sistema igualitário ou republicano que leva à impunidade. Quando o STF confrontou pessoas com projetos políticos e cargos, houve condenação.

Imagine o que aconteceria se você, eleito presidente, não contemplasse seu cunhado com uma agência reguladora? Como não indicar, nomear ou pedir um favor quando a ética da amizade diz que é exatamente assim que devemos proceder? Rose está correta. Se eu sigo uma ética que engloba a morte, eu mato; se ela legitima o "tirar partido" de uma relação e um cargo, eu peço. Why not?

Se jamais politizamos a desagradável separação (e o limite) entre o cargo público com suas obrigações e os seus eventuais ocupantes, que, dentro dele procedem como se fossem seus donos, o resultado só pode ser o que traduzimos como escândalo ou corrupção. A indicação "de cima" - do PR ou do JD - como diz Rosemary - permite tudo. É como produzir uma peça de teatro escolhendo os atores pelas suas relações com o dono do teatro e não com as exigências do papel. Aí está o óbvio ululante que ninguém quer ver.

O desequilíbrio entre ator e papel resulta nesse fracasso retumbante de tudo o que vem do governo por oposição a tudo que nasce na sociedade. Em todos os lugares onde se buscou a igualdade de todos perante a lei, a separação de pessoas e papéis públicos realizou-se de modo dramático. Foi uma tarefa revolucionária, como tanto gosta o anglo-eurocentrismo e a vulgata marxista. No Brasil, só agora começamos a perceber que não há a menor chance de mudança para uma sociedade igualitária, se não tivermos a coragem de adequar pessoas aos papéis públicos que elas eventualmente ocupem. 
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* Antropólogo. Escritor. Colunista do Estadão.
Fonte: Estadaão on line, 05/12/2012
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