Luiz Felipe Pondé*
Deus ama as infelizes e as elege como suas conselheiras. Qual o segredo da infelicidade?
O Deus de Israel sempre amou as adúlteras. Jesus também dispensou
cuidados especiais para com elas, e para com as prostitutas, os ladrões e
os desgraçados de todos os tipos. Deus parece não resistir à
sinceridade do pecador, assim como a filosofia parece amar a verdade do
melancólico.
Na Bíblia hebraica, Raquel, a segunda esposa de Jacó (depois chamado de
Israel), por muitos anos uma mulher estéril e idólatra por raiva de
Deus, enterrada fora do "cemitério da família" por ter sido uma vergonha
para esta mesma família, será escolhida por Deus como consoladora do
povo eleito no sofrimento.
Raquel é a "mater misericordiae" do judaísmo. Quando Israel sofre, é o
nome dela que deve ser lembrado. Deus ama as infelizes e as elege como
suas conselheiras. Qual o segredo da infelicidade?
Não se trata de brincadeiras teológicas "progressistas" que erram
achando que ninguém é pecador. A pastoral de hoje, vide as igrejas que
crescem por toda parte (o judaísmo não escapa tampouco desse vício),
cada vez mais se assemelha a grandes workshops de autoajuda ou
treinamentos motivacionais. Nada menos cristão do que um Jesus consultor
de sucesso. Ninguém quer ser pecador, só santo.
Mas aí reside o erro para com a teologia cristã mais sofisticada: nela, o
grande pecador é o mais próximo do santo. A beleza da antropologia do
cristianismo está neste sofisticado e denso vínculo dramatúrgico: quando
o corpo se põe de joelhos, pelo peso do pecado, o espírito se ergue.
Não se trata de dolorismo, mas, sim, da mais fina psicologia moral.
A santidade reside mais na alma do pecador do que na autoestima do "santinho".
Aliás, devo dizer que minha crítica à religião é diametralmente oposta
àquela de tradição epicurista ou marxista. Esta, grosso modo, critica a
religião porque ela faz do homem um alienado covarde, e que se vende a
Deus para ser um alienado feliz. Eu me alinho mais ao pensamento do
teólogo Karl Barth (século 20), para quem a religião torna tudo um
mistério maior e traz à tona um sofrimento maior, mas que, por isso
mesmo, amplia a consciência de nossa condição humana. Sofro, por isso
penso, e logo, existo.
Recuso as religiões institucionais não porque elas fazem do homem um
medroso, alienando-o de sua felicidade e autonomia (como creem Epicuro e
Marx), mas sim porque as religiões fazem do homem um feliz, alienando-o
de sua própria agonia. Quando a religião vira marketing, é melhor
caminhar só pelo vale das sombras.
Revi recentemente o maravilhoso "Fim de Caso" (filme de 1999, dirigido
por Neil Jordan), com a deusa Julianne Moore e Ralph Fiennes. O filme é
uma adaptação do romance de Graham Greene e narra a "sua conversão".
Trata-se de um fino tratado de teologia, melhor do que grande parte dos
livros que afirmam sê-lo.
No filme, a compreensão da íntima relação entre pecado e graça é
avassaladora. Nada mais forte do que a graça para iluminar a agonia do
pecador para si mesmo: o santo não é um santinho.
A personagem de Julianne Moore é uma adúltera, que ao longo do filme
apresentará traços claros de santidade, chegando a realizar um milagre. A
adúltera, infiel ao seu marido, destruidora da fé no casamento e no
amor que organiza a vida e a sociedade, o tipo mais vil de mulher, é
aquela que mais fundo toca Deus em sua paixão pela agonia humana. No
cristianismo, Deus leva a agonia humana tão a sério que resolveu Ele
mesmo passar por ela, na figura da Paixão de Cristo.
Um musical a estrear, baseado na obra de Victor Hugo (século 19), "Os
Miseráveis", com Hugh Jackman no papel de Jean Valjean, fugitivo da
cadeia, e Russell Crowe no papel de seu perseguidor implacável Jabert,
traz uma das maiores cenas da teologia cristã já representada na arte.
Jean Valjean, após ter roubado os castiçais da casa de um padre, e ser
pego pela polícia, é perdoado pelo padre que confirma para a polícia a
mentira contada por Valjean: "Sim, eu dei os castiçais para ele".
Este ato transforma Valjean. O encontro entre a misericórdia e o pecador é uma das maiores afirmações do sentido da vida.
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor. Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 02/12/2012
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