Marcelo Knobel*
Ayres Britto diz que sua visão espiritualista é confirmada pela física
quântica, mas não é disso que ela trata. O analfabetismo científico é um
risco à sociedade
Em entrevista recente à Folha, o recém-aposentado ministro do
Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, afirmou que sua visão
espiritualista de mundo seria confirmada pela física quântica, citando
diversos autores, entre os quais Einstein ("A vida começa aos 70", em 18
de novembro).
Cito dois trechos:
1) "Depois, de uns 12 anos para cá, comecei a me interessar por física
quântica, e ela me pareceu uma confirmação de tudo o que os
espiritualistas afirmam. A física quântica, sobretudo os escritos de
Dannah Zohar [especializada em aconselhamento espiritual e
profissional]."
2) "Einstein, físico quântico que era, cunhou uma expressão célebre:
'efeito do observador'. Ele percebeu que o observador desencadeava
reações no objeto observado. (...) Claro que quando você joga teoria
quântica para a teoria jurídica, se expõe a uma crítica mordaz. O
sujeito diz: "Mas isso não é ciência jurídica'."
Na verdade, a fascinante física quântica aplica-se somente a sistemas
físicos na escala atômica, jamais a questões profissionais ou jurídicas.
As analogias podem ser exercícios criativos ou poéticos até
interessantes, mas não passam disso.
Ao buscar a palavra "quantum" em qualquer livraria virtual, é assombroso
notar que a maioria das obras listadas refere-se a supostas explicações
quânticas dos mais diversos aspectos da vida -da memória à cura de
enfermidades, passando pelo sucesso no amor e na carreira.
Como físico, acredito em coisas incríveis, como entes que são ondas e
partículas simultaneamente, universos multidimensionais, tempos e
comprimentos que dependem da velocidade do objeto, estruturas
nanoscópicas que podem atravessar verdadeiras paredes e muitos outros
fenômenos que certamente não são nada intuitivos e continuam sendo
impressionantes, mesmo após anos e anos de estudo.
Mas em ciência o importante é que as teorias sejam comprovadas seguindo
critérios rígidos, metodologias adequadas e publicadas em periódicos de
circulação internacional, para que outros pesquisadores possam tentar
repetir os experimentos e modelos, verificando possíveis falhas e
buscando explicações alternativas, com certo ceticismo. Não é o caso das
ideias citadas pelo ministro.
Ocorre que, diariamente, somos inundados por inúmeras promessas de curas
milagrosas, métodos de leitura ultrarrápidos, dietas infalíveis,
riqueza sem esforço. A grande maioria desses milagres cotidianos são
vestidos com alguma roupagem científica: linguagem um pouco mais
rebuscada, aparente comprovação experimental, depoimentos de
pesquisadores "renomados", alardeado acolhimento em grandes
universidades. São casos típicos do que se costuma definir como
pseudociência.
A maioria das pessoas vive perfeitamente bem sem saber diferenciar
ciência de pseudociência. Mais cedo ou mais tarde, porém, em alguns
momentos da vida esse conhecimento pode ser muito importante. Seja para
decidir um tratamento médico, seja para analisar criticamente algum
boato, seja para se posicionar frente a alguma decisão importante que
certamente influenciará a vida de seus filhos e netos.
A sociedade como um todo deve assimilar a cultura científica. É
importante a participação de instituições, grupos de interesse e
processos coletivos estruturados em torno de sistemas de comunicação e
difusão social da ciência, participação dos cidadãos e mecanismos de
avaliação social da ciência.
Em uma sociedade onde a ciência e a tecnologia são agentes de mudanças
econômicas e sociais, o analfabetismo científico, seja de quem for, pode
ser um fator crucial para determinar decisões que afetarão nosso
bem-estar social.
É impossível tomar uma decisão consciente se não se tem um mínimo de
entendimento sobre ciência e tecnologia, como funcionam e como podem
afetar nossas vidas.
-----------------------------
Nenhum comentário:
Postar um comentário