No dia 25 de dezembro, quando boa parte das famílias do Ocidente
estiverem reunidas para celebrar o Natal, a escritora britânica Karen
Armstrong estará sozinha. Sem peru nem ceia, sem presentes nem árvore de
Natal, ela pretende simplesmente confraternizar com seu trabalho, que
inclui consultorias e conferências na área de religião comparada. Aos 68
anos, Karen é uma das mais prestigiadas autoras de livros sobre a fé.
Entre seus mais de 20 títulos estão best-sellers como "Uma História de
Deus", "A Bíblia, uma Biografia" e "Jerusalém: Uma Cidade, Três
Religiões".
"Não tenho família. Estarei sozinha. Não me importo, porque posso ter
tempo para trabalhar", conta Karen, que acaba de lançar no Brasil seu
último livro, "12 Passos para uma Vida de Compaixão" (Paralela), obra
que pretende despertar um jeito de viver mais compassivo em seus
leitores.
Para Karen, o Natal deveria nos levar de volta aos momentos mágicos
da infância e a refletir mais sobre os sem-teto, uma vez que a história
do nascimento de Jesus começa com um casal de refugiados que não
encontra abrigo nas hospedarias de Belém. Mas o consumismo, marca de um
mundo "dominado pelo mercado", tira o brilho natalino, o que não impede o
Ocidente de parar por uma noite a fim de celebrar a chegada de Jesus.
Para a escritora inglesa, que foi freira durante sete anos e formou-se
em literatura pela Universidade de Oxford, a mensagem cristã reverbera
ainda hoje porque Jesus foi um autêntico praticante da Regra de Ouro -
"não faça ao outro aquilo que você detesta" - ensinando-a, na verdade,
em sua versão positiva - "faça aos outros o que gostaria que eles lhe
fizessem".
Os primeiros passos de Karen rumo ao mundo religioso foram dados aos
17 anos, quando entrou para um convento católico na Inglaterra. Viveu
sete anos de conflito pessoal e espiritual e decidiu desistir da vida
restritiva de sua ordem religiosa em 1969. Nunca havia ouvido falar de
Beatles nem da guerra do Vietnã. Questionou sua fé, formou-se, lecionou
literatura na Universidade de Londres e se reencontrou com a religião ao
escrever seus livros. "Monoteísta freelancer", Karen também tem títulos
sobre Maomé e Buda e defende o diálogo religioso.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Valor.
Valor: Ao olharmos para nosso mundo, como a
senhora sugere no segundo passo de seu livro mais recente, encontramos
uma sociedade que realiza façanhas no campo da ciência e da tecnologia,
mas com poucos gênios espirituais. O fascínio da ciência calou a voz dos
pensadores da espiritualidade?
Karen Armstrong: Sim, o desenvolvimento da ciência
no fim do século XVII tornou o pensamento religioso difícil para as
pessoas. Apesar do brilhantismo tecnológico, o pensar religioso é
subdesenvolvido, primitivo. Lemos os textos sagrados, por exemplo, com
uma literalidade que é sem paralelo na história da religião.
Valor: Por que a vida de Jesus teve o poder de marcar tão profundamente a humanidade?
Karen: Certas pessoas parecem simbolizar o que o ser
humano pode ter de melhor. Jesus é uma dessas pessoas, para muita
gente. Vemos nos Evangelhos alguém que é muito humano e corajoso, sempre
pronto a desafiar o sistema e derrubar barreiras, alguém que sai de seu
caminho para praticar a compaixão pelos outros, até para pessoas que
não são tão boas ou merecedoras. Mas Jesus é apenas uma dessas figuras
paradigmáticas. Confúcio, Buda e Sócrates, todos têm um efeito parecido
nas pessoas.
"Temos que amar o estrangeiro, nossos
inimigos, e alcançar todas as tribos e nações. Isso não é nada fácil de
fazer, requer um esforço diário"
Valor: No período do Natal as pessoas se predispõem mais a ter atitudes compassivas, a reconciliações e ao perdão?
Karen: Penso que é um período no qual as famílias se
reúnem e nos lembramos dos Natais mágicos que tivemos na infância. Mas
também é verdade que as pessoas podem fechar as portas para o resto do
mundo nessa época. Não tenho família. Estarei sozinha neste Natal. Não
me importo, porque posso ter tempo para trabalhar. Se há momentos nos
quais somos inclinados ao perdão e à reconciliação, eles são
superficiais, porque não sobrevivem à época do Natal. Penso que a fúria
consumista do Natal é estressante. Não se trata de hipocrisia, apenas
uma marca de nossa sociedade dominada pelo mercado. A história do Natal
deveria nos fazer refletir sobre os proscritos. Ela fala dos refugiados
da crueldade, da pobreza e da falta de um teto. Da falta de um lugar na
hospedaria.
Valor: A "Bíblia" diz que Jesus se relacionou
com pessoas consideradas impuras e odiosas pela sociedade da época, como
os cobradores de impostos, as prostitutas e os leprosos. Se andasse
pelas ruas de Jerusalém hoje, para quem ele olharia com maior compaixão?
Karen: Creio que gostaria de alcançar todos os
judeus e palestinos em Jerusalém que perderam seus amados na luta, os
que foram feridos, emocional e fisicamente por anos de guerra. Pediria
aos extremistas dos dois lados que o coração deles não ficasse pesado
pelo sofrimento, mas que vissem que o outro lado também está sofrendo.
Pediria ao povo judeu que se lembrasse como se sentiu quando eles mesmos
perderam sua terra, quando estiveram sem teto e privados de tudo - e
que deixassem que essa lembrança conduzisse o seu jeito de lidar com os
palestinos, que hoje passam por experiência semelhante. Que se
lembrassem de Hilel, contemporâneo mais velho de Jesus, que resumiu toda
a lei judaica desta forma: "Aquilo que detestas, não faça ao seu
próximo. Esta é a 'Torá', o resto é comentário". Jesus pediria aos
israelenses para aplicar esse ensinamento à situação política atual.
Também lembraria aos palestinos os sofrimentos que os judeus
experimentaram na Europa no século XX, trauma que está vivo. O
sofrimento e o medo distorcem a maneira como respondemos a uma situação.
Jesus pediria às pessoas que olhassem para toda a dor que já
experimentaram e que se lembrassem de que seus "inimigos" também estão
sofrendo.
Valor: Há relatos sobre muçulmanos na África que tiveram sonhos nos
quais Jesus aparecia a eles, revelando-se como salvador da humanidade,
sonhos esses que acabaram por levá-los a deixar o islamismo e se
converterem ao cristianismo. Após essas experiências, famílias passaram a
ser perseguidas e até mortas. A figura de Jesus promove mais a paz ou a
dissensão entre os homens?
Karen: Podem ser as duas coisas. Podemos usar nossas
tradições religiosas para o bem e para o mal. Temos a capacidade de
estragar coisas que são inerentemente lindas. Cristãos e judeus também
foram inspirados pelo profeta Maomé a abraçar o islã e se tornar
muçulmanos. Na Idade Média, os Cruzados matavam cristãos e judeus em
nome de Jesus.
Valor: Seu livro mostra como o sentimento de
benevolência e de disposição de "sofrer com" o outro faz parte da
humanidade, assim como os chamados quatro instintos básicos - comer,
lutar, fugir e reproduzir-se. A senhora relata como a preocupação com o
próximo é a marca mais importante das principais tradições religiosas.
Se há tantos bons exemplos a esse respeito, e há tanto tempo, por que
esse movimento por um mundo mais compassivo parece sempre uma utopia?
Karen: Somos biologicamente programados para a
compaixão, bem como para a violência e o medo. Temos regiões em nosso
cérebro e hormônios que nos inclinam ao altruísmo, o que permitiu à
nossa espécie que sobrevivesse. Isso nos ajudou a viver juntos, em
grupos, de maneira que os seres humanos, frágeis em tamanho, pudessem
ser mais fortes do que se tentassem existir sozinhos. Os mamíferos
tinham esses centros em seus cérebros, uma característica que os
répteis, por exemplo, não tinham. Estes eram regidos apenas pelos quatro
instintos básicos. Esses centros na região do sistema límbico do
cérebro capacitam uma mãe, por exemplo, a acordar toda noite para cuidar
de seu filho, a despeito de sua própria exaustão, enquanto os répteis
simplesmente põem os ovos e vão embora.
Valor: Por que parece ser tão difícil às vezes?
Karen: É difícil. Os quatro instintos básicos dizem
que "tudo é a meu respeito". Eles nos encorajam a dizer sempre e em
todas as áreas: "Primeiro eu!". Nos negócios, nos relacionamentos, na
política. Instintivamente, procuramos nossos interesses. A compaixão,
entretanto, pede que não nos coloquemos numa categoria especial. Pede
que nos retiremos do trono e ali coloquemos o outro. E as tradições
religiosas também afirmam que não podemos limitar nossa benevolência
àqueles de nosso grupo congenial - nossa nação, partido político ou
igreja. Devemos ter o que os chineses chamam de "jian ai" - preocupação
para com todos. Temos que amar o estrangeiro (Levítico), amar nossos
inimigos (Novo Testamento) e alcançar todas as tribos e nações
(Alcorão). Isso não é nada fácil de fazer, mesmo reconhecendo que a
compaixão é importante e admirando-a quando a vemos manifesta nos
outros, mesmo percebendo quanto ela é essencial em nosso mundo. Isso
requer um esforço diário e não é todo mundo que está a fim de fazê-lo.
Valor: A senhora diz que os 12 passos podem ser
seguidos por qualquer pessoa, inclusive as que não cultivam nenhum
sentimento religioso. Que experiência ou fato seria capaz de despertar
em nós esse desejo?
Karen: Precisamos olhar para o sofrimento do mundo.
Somos confrontados com imagens de dor mais que qualquer outra geração
anterior. Vemos vítimas da guerra, de enchentes, terremotos, terrorismo,
fome. De vez em quando, nos atinge uma "fadiga de compaixão", que nos
faz tentar bloquear tanto sofrimento e dizer que aquilo tudo não tem
nada a ver conosco. Mas há um movimento instintivo em direção ao outro
quando o vemos em apuros. Um dos princípios de Confúcio diz que deve
haver algo errado com a pessoa que consegue passar calmamente por uma
criança que está para cair da beira de um poço. Você, instintivamente,
se lança em direção a ela para pegá-la. Há centros cerebrais que
produzem essa empatia também. Diz a história que Buda viveu uma vida
protegida e até os 29 anos nunca havia presenciado nenhum sofrimento
humano. Fora mantido por seu pai no palácio e os guardas mantinham todo
tipo de visão perturbadora longe de seu alcance. Até que os deuses o
confrontaram com a presença de um velho, um doente e um cadáver. Ele
ficou tão chocado que deixou sua casa na mesma noite, determinado a
encontrar uma solução para o sofrimento humano.
Valor: Desse modo, Buda escolhe deixar a proteção do palácio.
Karen: A mensagem ensina aos budistas o que eles
devem fazer para alcançar a iluminação: até que reconheça a onipresente
dor no mundo, você jamais poderá começar sua busca espiritual. A imagem
do palácio com esses guardas ao redor de seu perímetro é uma maravilhosa
imagem da mente em negação. Todos queremos nos defender do sofrimento e
não permitir que nos atinja. Mas vivemos no paraíso dos tolos, porque o
sofrimento nos pressiona por todos os lados. Todos sofremos, mesmo os
mais afortunados. Quando permitimos que a dor do outro invada nossa
consciência, então acontece esse despertar.
Valor: No livro, a senhora ensina que a Regra de
Ouro está na essência da maioria das tradições religiosas. Jesus tambem
pregou a Regra de Ouro - mas colocando-a em sua forma positiva - "faça
ao outro o que você gostaria que fizessem a você". Jesus ampliou o
sentido da lei judaica em outras passagens - como quando diz que todo
aquele que odiar alguém no coração, na verdade, para Deus, já cometeu
assassinato. Essa expansão do significado da lei judaica teve um impacto
naqueles dias. Os cristãos fundamentalistas arrancaram essas páginas de
suas "Bíblias"?
Karen: Os rabinos da era Talmúdica também estavam
ampliando o sentido da lei judaica naquela época, da mesma maneira que
Jesus. Mateus apresenta Jesus no sermão da montanha como um fariseu,
como [o rabino] Hilel [o nome pelo qual é conhecido um célebre líder
cabalista, que viveu durante o reinado de Herodes, o Grande, na época do
Segundo Templo], que também ensinou a Regra de Ouro. Precisamos tanto
da forma positiva quanto da negativa da Regra de Ouro. Não adianta sair
fazendo o bem aos outros se, ao mesmo tempo, você está dizendo coisas
horríveis e equivocadas a respeito de outras pessoas, outras nações,
outras religiões. Se não quer ouvir insultos à sua tradição, não insulte
a tradição dos outros. Quanto aos fundamentalistas, infelizmente, é
verdade - e não somente os fundamentalistas - que muitas pessoas
preferem estar certas a ser compassivas. Isso é, na verdade, gratificar o
ego, muito mais do que vestir "o dia todo, todos os dias" [Confúcio] os
sapatos do outro.
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Reportagem Por Marília de Camargo Cesar | De São Paulo
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