Contardo Calligaris*
Nos entulhos, as vítimas procuram sua identidade, que ficou nas coisas e nos outros perdidos
1) Os amigos que encontro, nesta volta de viagem, querem saber do
terremoto na Itália. Como foi? O que pensei e senti? Pois é, o terremoto
não me inspirou pensamentos sobre a fragilidade da existência e a força
da natureza -ou outro lugar-comum que valha.
Na hora, só tive iniciativas práticas. Como já contei, logo no primeiro
tremor, juntei numa pasta passaportes, bilhetes de avião e carteiras.
Nos dias seguintes, me deslocava sempre com esses apetrechos e, de
noite, deixava ao lado da cama uma bolsa que continha a tal pasta mais o
necessário para que a gente, pulando da cama para a rua, aguentasse o
frio e a chuva.
Será que eu me preocupava com nossa mobilidade, ou seja, com a
possibilidade de irmos embora sem burocracia, em caso de catástrofe? Ou
será que me preocupava em termos constantemente conosco uma prova de
nossa identidade?
2) Na madrugada do primeiro tremor, no dia 20, fiquei acordado até a luz
do dia, para não ser surpreendido por eventuais tremores de
assentamento. Passei o tempo olhando para as coisas ao meu redor.
Nos 60 anos em que meus pais mantiveram um apartamento em Veneza, eles
abarrotaram seu espaço: nada de grande valor (afinal, o lugar fica
desocupado durante boa parte do ano), mas muitos objetos carregados de
história familiar, marcados pelas mãos e pelos olhares dos meus pais,
avós ou bisavós. De cada objeto que considerei, tentei me contar a
história: de onde vinha? De quem fora? Como chegara até lá?
Talvez o livro mais bonito e tocante que li nos últimos meses tenha sido
"A Lebre com Olhos de Âmbar", de Edmund de Waal (Intrínseca).
É a história de uma família, narrada, por assim dizer, por uma coleção
de miniaturas japonesas que passa, ao longo de quase dois séculos
(cheios de fúria e guerras), de mão em mão, de país em país e de um
continente a outro.
Sem dúvida, há objetos que são melhores sedimentos da história do que
outros. Uma miniatura japonesa, por exemplo, já nasce como vestígio da
história de quem a entalhou -às vezes, meses ou anos a fio.
Mas, no fundo, qualquer objeto, até um artefato industrial, tenta contar
sua história. Qualquer mercadoria pode nos falar do trabalho de quem a
produziu e dos desejos dos que a compraram, perderam ou trocaram. O que
acontece, em geral, é que a gente não se dá o tempo de escutar.
Logo na região devastada pelo terremoto, nos claustros de San Pietro, em
Reggio Emilia, está aberta até outubro (tremores permitindo) a
exposição "Gli Oggetti ci Parlano" (os objetos falam conosco). Uma busca
on-line explica a iniciativa e permite ver, em vídeo, partes da mostra:
os cidadãos de Reggio foram convidados a emprestar objetos pessoais que
tivessem, para eles, uma história significativa -a qual eles contam em
depoimentos filmados.
3) Parêntese: já na primeira noite, lembrei-me de uma recomendação de
meu pai, com sua sabedoria de clandestino procurado por fascistas e
nazistas: "Se você fugir, não volte atrás". E ele agregava exemplos de
resistentes que fugiram a tempo, mas quiseram voltar, rapidamente, para
pegar algo que tinham esquecido ou mesmo só para olhar sua casa pela
última vez -e foram presos.
Confirmando o conselho de meu pai, no segundo terremoto, o do dia 29,
morreu o padre Martini, em Rovereto; ele voltou para a igreja de Santa
Caterina, já periclitante desde o dia 20 -só um instante, para recuperar
uma imagem santa. Entrou exatamente na hora do tremor das nove da
manhã.
4) Passei minha infância brincando e fuçando nos escombros (de
bombardeios aéreos, não de terremotos, claro). Imagino que, se minha
casa fosse demolida, mesmo se não houvesse vítimas, eu ficaria, mexendo
no entulho -mas à procura do quê? De uma jarra de prata que não se
amassou além da conta, de uma cerâmica que não quebrou, de um livro que
sobreviveu?
É fácil dizer que tanto faz, "deixa para lá: o passado está na gente, na
nossa lembrança". Fácil e um pouco falso: nossa identidade é sempre
dispersa aos quatro ventos. Ela está nas pedras, nas coisas e nos
outros.
A clínica constata que as vítimas das grandes catástrofes, quando erram
pelos entulhos, entre corpos e restos, não sabem mais direito quem elas
são. O que elas procuram é sua própria identidade, que estava nas
coisas, nas pedras e nos outros que se perderam.
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* Psicanalista italiano radicado no Brasil. Escritor. Colunista da Folha
ccalligari@uol.com.br@ccalligaris
Fonte: Folha on line, 07/05/2012
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