Roberto DaMatta*
Quantas mentiras, eis a questão deste Brasil que um dia foi de todos nós.
Que existem muitas verdades num país onde o real é o que está nos
autos? Na terra na qual o que conta são as versões do fato, pois os
fatos são sempre inatingíveis? No país onde a verdade é tão variável
quanto o clima? Aprendi como a verdade tinha a ver com força e poder
quando, pequeno, me obrigavam a sair de casa de capa num dia ensolarado.
Que ela seja dependente de quem fala - os muitos que gostam de mim
falam a verdade, os poucos que não me amam mentem - eu pesquisei,
escrevi e hoje lamento que nem a esquerda tenha acabado com essa
indecente relatividade.
Uma verdade de um lado e do outro dos Pirineus. Ou, como dizem os
velhos ianques hoje quase todos esclerosados, uma verdade acima e outra
abaixo do Rio Grande, onde começa a tal Latin America - antigo Terceiro
Mundo, trocando de lugar com eles.
Uma verdade masculina e outra feminina como me explicava um taxista.
Nós, homens, éramos ardentes e infiéis; elas, leais por índole. Não
tendo contato direto com a juventude, como eu, o sábio machista não
percebia quanto sua tese poderia ser posta de cabeça para baixo. Os
atributos humanos são móveis e, por isso, sujeitos de crenças
inabaláveis. Pois só o incerto é alvo de certezas.
Ninguém tem fé num ovo frito! Cremos em Cristo, não nos pregos que o
supliciaram. Mas todos sentimos a sombra da superstição que é o apanágio
dos livros sagrados diante de um fato incerto; ou de um evento
insofismável, mas deformado pelo poder. Como decidir quando se trata de
uma conversa entre um ex-presidente mandão, um ex-ministro da Justiça
(que é cega) e da Defesa (que deve tudo ver) e um magistrado da mais
alta corte de Justiça de um país - um juiz ciente de seu saber e das
pompas do seu cargo? Num diálogo no mínimo complexo entre essas figuras -
que dizem o certo por linhas tortas; ou o torto por linhas certas -,
como não inventar algum tipo de convicção que ajude a suspender o juízo
ou a enterrar a razão? Razão, aliás, que por sua vez, não existe neste
nosso mundo submoderno onde nada - e só o nada - é plausível e real?
* * *
A verdade verdadeira só pode nascer por fé ou apoiada em critérios
externos. Os meios de reprodução da vida seriam provas da verdade. Mas
as coisas se complicaram porque tudo é possível por meio de montagens,
de modo que se pode duvidar da prova fotográfica ou sônica. Um
governador é filmado recebendo uma bolada; um sujeito é televisionado
saindo com uma cesta de dólares de um elevador; uma senhora, esposa de
um ilustre deputado, vai a um banco e é filmada pegando um dinheiro;
ouvimos conversas fraternais entre um senador, um contraventor e seus
associados; vemos fotos de um governador com um empresário com o qual se
fizeram contratos de milhões. Em Júpiter e no Inferno, tudo isso seria
um testemunho. Mas no Brasil do "tu é nosso e nós somo teu" - o velho
Brasil do toma lá dá cá que transformou o governo numa casa-grande e a
sociedade numa senzala -, isso é versão! A coisa mais inefável no Brasil
de hoje é provar algo contra alguém que seja "nosso".
Temos fé ao contrário: acreditamos que a verdade não existe e que os
fatos são fabricações. Pergunta-se: a bomba atômica e a goiabada cascão
existem? O homem foi mesmo à Lua? Existe morte? Tivemos escravidão?
Falarei apenas sobre o homem na Lua. Sobre isso, ouvi do meu pai uma
negação impetuosa: seria um truque dos americanos! Prova cabal: eles
desceram na Lua e nela, conforme sabemos, não se desce, sobe-se. Ela
está no céu, acima de todos nós!
* * * *
"Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se
haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que
se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas
razões. Ambos tinham razão. Não era que um via uma coisa e outro outra,
ou que um via um lado das coisas e outro um outro lado diferente. Não:
cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via
com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa
diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla
existência da verdade."
Essa meditação de Fernando Pessoa serve de epígrafe ao meu livro Carnavais, Malandros e Heróis (de
1979). Nele, eu argumento que o carnaval é uma expressão dessa
sociedade nascida da duplicidade ética que, para o bem e para o mal,
acasalou igualdade e hierarquia. Escrevi num momento em que as teorias
somente contemplavam o falso e o verdadeiro, o conflito ou a paz, como
queria Karl Popper e Karl Marx. Há um Brasil da casa e das amizades que
não foi soterrado, como as ruínas de Roma, por um Brasil republicano,
hoje, petista. Disseram que eu idealizava o Brasil tradicional. Eu
pergunto: o Brasil de Lula e Dilma é tradicional ou moderno? Quem fala a
verdade? O ex-presidente ou o magistrado do Supremo? Poderia haver uma
verdade numa sociedade sem bom senso e sem um mínimo de decência? Essa
decência das crianças que sabem quando os doces acabam, porque é no
limite que se esconde a verdade?
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* Antrópologo. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 06/06/2012
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