quinta-feira, 1 de maio de 2014

O Papa da volta à grande disciplina

 Leonardo Boff*
 
O pontificado de João Paulo II foi longo e complexo. Só lhe faremos justiça se o inserirmos dentro de um grande arco de questões que vinham ocupando a Igreja há muito tempo. Só assim ganharemos altura para ver seu real significado. Procuraremos ser o mais objetivo possível mas não indiferente.

Qual a característica fundamental deste Papado? É a restauração e a volta à grande disciplina. Ele não se caracteriza por uma reforma, mas por uma contra-reforma. Ele representa a tentativa de sustar um "aggiornamento” (processo de modernização) que irrompera na Igreja a partir dos anos 60 e que estava tomando conta de toda a cristandade. João Paulo II, a pretexto de salvaguardar a identidade católica, deu uma freada vigorosa neste processo.

1. Acerto de contas com a Reforma e a modernidade

Com isso, retardou um acerto de contas que a Igreja vinha fazendo com referência a duas graves questões que a martirizavam há quatro séculos.

A primeira delas está ligada ao surgimento de outras Igrejas como consequência da Reforma Protestante do século XVI. Fraturou-se a unidade da Igreja romano-católica. Ela teve que tolerar outras igrejas, embora as interpretasse como cismáticas e heréticas.

A segunda grande questão se deriva da modernidade iluminista com o surgimento da autonomia da razão, da tecnociência, das liberdades civis e da democracia. Esta nova cultura colocava em xeque a revelação da qual a Igreja se sente portadora exclusiva e denuncia a forma como a Igreja se organiza institucionalmente como uma monarquia absolutista espiritual em contradição com a democracia e a vigência dos direitos humanos.

Contra as igrejas evangélicas a estratégia do Vaticano era a sua reconversão para que se voltasse à unidade eclesiástica antiga sob uma única cabeça, o Papa.

Contra a sociedade moderna, a relação era de crítica e condenação de seu projeto emancipatório e secularizador, visando refazer a unidade cultural sob a égide de valores morais cristãos.

As duas estratégias redundaram em fracasso. As igrejas cresceram e se firmaram em todos os continentes. A sociedade moderna, com suas liberdades e com sua ciência e técnica, se tornou o paradigma para as sociedades no mundo inteiro. A igreja romano-católica se viu transformada num bastião de conservadorismo religioso e de autoritarismo político.

Foi obra do bom senso e da ousadia de um Papa, de João XXIII, a convocação de um Concílio Ecumênico (reunião de todos os bispos da Igreja em Roma) para enfrentar corajosamente estas duas questões não resolvidas.

Efetivamente, o Concílio Vaticano II (1962-1965) assumiu como lema: não mais o anátema mas a compreensão; não mais condenação mas diálogo.

Face às igrejas inaugurou o diálogo ecumênico que pressupõe a aceitação da existências de mais igrejas.

Face ao mundo moderno houve uma verdadeira reconciliação com a esfera do trabalho, da ciência, da técnica, das liberdades e da tolerância religiosa. Reconheceu a legítima autonomia das realidades terrestres. Elas são boas não porque recebem a benção da Igreja, mas porque são boas em si mesmas, como expressão da criação boa de Deus. A Igreja define o seu lugar dentro do mundo moderno, como sinal e instrumento da herança de Cristo, aprendendo deste mundo e colaborando com ele na dignificação de todos os âmbitos da vida.

Ela mesma se redefine primeiramente como Povo de Deus em marcha e só depois como sociedade hierarquicamente organizada.

Ocorreu, portanto, um acerto de contas altamente positivo. Ao invés de continuar uma ilha errática de um mundo definitivamente passado, a Igreja se fazia solidária com as buscas e as angústias do homem contemporâneo.

2. O acerto de conta com os pobres

Mas faltava ainda um terceiro acerto de contas: com os pobres e sofredores que são as grandes maiorias da humanidade. Foi mérito da Igreja latino-americana lembrar que não existe apenas um mundo moderno desenvolvido mas também um submundo subdesenvolvido. Ela suscitou a pergunta incômoda: como anunciar a Deus como Pai num mundo de miseráveis? Só faz sentido anunciar a Deus como Pai caso tirarmos os pobres da miséria, portanto, se transformarmos esta realidade de ruim em boa. Os sujeitos desta transformação serão os próprios pobres. Ora, na América Latina os pobres são simultaneamente cristãos. A inteligência política sugere transformar o capital espiritual e ético dos cristãos pobres numa força de mobilização e mudança social.

Foi o que fizeram os setores mais dinâmicos da Igreja latino-americana, animados por alguns profetas como Dom Helder Câmara. A consigna era: fazer uma opção da Igreja pelos pobres contra a pobreza. Para viabilizar esta opção se criaram as comunidades eclesiais de base (só no Brasil há cerca de cem mil), os milhares de círculos bíblicos e as pastorais sociais, por terra, por teto, por saúde, em favor dos indígenas, dos negros, das mulheres marginalizadas e assim por diante. Daí nasceu a Igreja da libertação e a teologia que a acompanha, a teologia da libertação.

Tal viragem fez com que muitos cristãos entrassem nos movimentos sociais libertários, até em frente armadas, e que numerosos bispos e até cardeais assumissem papel expressivo no combate às ditaduras militares latino-americanos e na defesa dos direitos humanos, entendidos principalmente como direitos dos pobres.

João Paulo II foi eleito Papa quando estava em curso esse vigoroso processo, chamado por nós de eclesiogênese, quer dizer, a gênese de um novo tipo de Igreja popular, pobre, profética e libertadora.

3. O projeto papal da restauração

Como se situou o Pontificado de João Paulo II face a estes cenários de Igreja?

Ele se situou, logo no início, na contracorrente destas tendências que eram dominantes. Para esta postura dois fatores foram, seguramente, determinantes: sua origem polonesa e os círculos da Cúria Romana, marginalizados mas não derrotados pelo Concílio Vaticano II.

João Paulo II é polonês. Em sua vida conheceu apenas regimes totalitários: o nazismo e o stalinismo. Provém de uma Igreja perseguida que fizera da fé maciça dos fiéis uma força de resistência e de libertação, tanto mais eficaz quanto mais for ligada à tradição e se mantiver coesa internamente. Esta estratégia, legítima na Polônia, não permitia ao Papa avaliar adequadamente as discussões internas da Igreja universal em processo de "aggionamento” e diálogo com a cultura moderna, caracterizada pela secularização, pelo pluralismo, pelo indiferentismo e pelo relativismo. Segundo sua leitura, condicionada pelo seu lugar social polonês, tal contato poderia colocar em risco a identidade da Igreja. Daí seu propósito firme de reafirmar fortemente a identidade católica.

Em Roma encontrou a burocracia vaticana, por sua natureza conservadora, que pensava exatamente da mesma forma. Estabeleceu-se um bloco histórico poderoso Papa-Cúria com o propósito de impor a restauração da identidade e da antiga disciplina.

Naturalmente, o Papa buscou colaboradores que dessem sustentação à esta linha. O principal deles foi Joseph Ratzinger, um teólogo alemão brilhante, feito logo cardeal e levado à Roma para zelar pela fé e homogeneizar a teologia oficial para ser referência para toda a Igreja.

A estratégia não foi opor-se frontalmente ao Concílio Vaticano II, o que agravaria a crise na Igreja, mas de lê-lo na perspectiva do Concílio Vaticano I (1870). Este Concílio é todo centrado na figura do Papa, feito infalível e dotado de poderes absolutos que, no fundo, só valeriam para Deus.

Bastou este código Wojtyla/Ratzinger para redefinir todo o percurso da Igreja, desde a sua eleição em 1978 até os dias atuais.

Iniciou-se um processo de restauração daquela ordem construída sobre um modelo de Igreja piramidal, em cujo topo, solitário e absoluto, se encontra o Papa, depois os bispos, os padres, os religiosos e, lá em baixo, os leigos. Tudo gira ao redor da concepção de centro: o Papa, Roma, a Igreja hierárquica, o Ocidente cristão. Não raro, confunde-se o mundo com Roma e Roma com a Polônia, entendida como referência de fidelidade à ortodoxia tradicional.

O carisma pessoal do Papa operacionalizou à maravilha este projeto. Ele é indiscutivelmente uma figura carismática, com inegável irradiação, um superstar com habilidade de dramatização mediática, sabendo escolher as palavras de efeito e os gestos de impacto.

Suas andanças incansáveis pelo mundo criou a impressão de que ele é o único e verdadeiro bispo da Igreja, feita a sua única paróquia e diocese. Todos os bispos, perto dele, ou ficam pequenos ou desaparecem. Um fiel pode não saber o nome de seu pároco ou de seu bispo. Mas sabe o nome do Papa.

Para levar avante seu projeto de restauração identitária se muniu dos instrumentos adequados. Reescreveu o direito canônico e com isso enquadrou toda a vida da Igreja (as comunidades eclesiais de base não entram a não ser como "pias associações”). Fez publicar o Catecismo Universal da Igreja Católica e, com isso, oficializou o pensamento único dentro da Igreja. Com sucessivas instruções deu por terminada a fase criativa na liturgia que se incarnava nas várias culturas (a proibição da missa dos quilombos (negros) e a da terra-sem-males (índios) e que agora deve se ater ao que está oficialmente estabelecido dentro do rigor do cânon romano. Subtraiu o poder decisório do Sínodo dos Bispos, submetido totalmente ao poder papal. Limitou o poder das Conferências Continentais de Bispos e das conferências nacionais episcopais (algumas foram literalmente humilhadas como a da Holanda e da Áustria) e das conferências de religiosos a nível nacional e internacional, marginalizou os leigos em seu poder de participação decisória e negou a plena cidadania eclesial às mulheres, relegadas a funções meramente marginais, mas sempre longe do altar e do púlpito.

Fechou questões candentes, proibidas de serem discutidas em público como o celibato dos padres, o acesso das mulheres ao sacerdócio, as questões de moral familiar, o uso de preservativos, a questão dos homossexuais. Em quase todas as questões discutidas da biologia e da genética que roçam temas morais, a posição oficialista do Vaticano é negativa, fechada, quando não reacionária, em nome da defesa da vida e da moral.

4. Controle e punição a teólogos

Houve uma vigilância estrita sobre a produção do pensamento teológico. Mais de 140 teólogos, dos mais capacitados e criadores, foram ou interrogados nas instâncias doutrinárias do Vaticano, ou punidos, ou depostos de suas cátedras, ou silenciados e até excomungados. Aqui a repressão ganhou, em alguns momentos, caráter de crueldade. O grande e muito estimado teólogo moralista Bernard Häring, velhinho e extremamente doente, foi levado a julgamento e a longos interrogatórios nas salas da ex-Inquisição. Seu testemunho é avassalador: os interrogatórios que padeceu por parte dos militares nazistas não foram tão severos e duros como aqueles sob o Cardeal Inquisidor Joseph Ratzinger. Este Papa usou e abusou do cajado, algumas vezes contra as ovelhas ao invés de contra os lobos.

No afã de criar certezas num mundo de incertezas, João Paulo II pôs a funcionar uma verdadeira máquina de fazer discursos, de escrever instruções, de lançar cartas apostólicas e de produzir encíclicas, superando qualquer capacidade de um simples fiel poder ler e assimilar. Proclamou mais de 1300 beatos e canonizou mais de 500 santos, um verdadeiro forno de ícones, com o mesmo propósito de criar referências seguras para os fiéis. Algumas figuras são polêmicas e sob alguns aspectos francamente escandalosas como a canonização do Papa Pio IX, um dos mais reacionários e pessoalmente destemperados da história do Papado e a figura do fundador da Opus Dei, Escrivá de Balaguer, ligado ao que há de mais dúbio e menos evangélico no poder político e econômico. Mas ambos reforçavam poderosamente o papado e a instituição eclesiástica, coisa que mais conta neste modelo centralizador de Igreja.

João Paulo II alimentou uma desconfiança fundamental para com o mundo moderno. Faltava-lhe uma verdadeira teologia da secularização, no sentido da legítima autonomia das realidades da política e da cultura.

Juntamente com seu principal assessor, o Cardeal Joseph Ratzinger, era caudatário da visão agostiniana de história, segundo a qual a história que realmente conta é somente aquela que passa pela mediação da Igreja, portadora da salvação sobrenatural. Aquela que passa pelas mediações do empenho humano e da história não alcança altura divina e se faz irremediavelmente refém da situação decadente da condição humana e por isso é insuficiente diante de Deus.

Em nome deste agostinismo político mostrou uma fundamental incompreensão da teologia da libertação latino-americana. Esta afirma que a libertação é feita pelos próprios pobres. A Igreja comparece apenas como aliada deles reforçando e reconhecendo a legitimidade de suas lutas. Para o Cardeal Ratzinger esta libertação é puramente humana e por isso sem relevância sobrenatural.

5. Visão curta e simplista da Teologia da Libertação

Importa ressaltar que o Papa teve uma visão curta e simplista deste tipo de teologia. Leu-a na ótica de seus detratores. E hoje sabemos, a partir das informações que a CIA lhe passava, especialmente, sobre sua importância na América Central. Interpretou-a como um cavalo de Troia do marxismo que ele se sentia na obrigação de denunciar, pois tinha experiência dele em sua pátria. Acolheu a ideia errônea de que o perigo da América Latina seria o marxismo. Quando o perigo é e sempre foi o capitalismo selvagem e colonialista com suas elites antipopulares e retrógradas.

O Papa viu somente a missão religiosa da Igreja e não também sua missão social, em favor dos pobres em sua busca de justiça. Se tivesse dito: "vamos apoiar os pobres e engajar a Igreja nas mudanças, a partir daquilo que é nosso, do evangelho e da tradição profética”, outro teria sido o destino político na América Latina. Ele nos fez perder uma chance histórica única.

Lamentavelmente cercou-se de eclesiásticos latino-americanos levados a Roma, em sua grande maioria conservadores, carreiristas, intelectualmente medíocres e de um papismo infantil e adulador. De lá organizaram a restauração conservadora em todo o Continente. Isso se operou mediante a transferência de bispos proféticos para dioceses distantes, a mediocrização do episcopado com a nomeação de bispos, distanciados da vida do povo, o fechamento de institutos de teologia e a punição de teólogos. O dedo em riste do Papa contra o poeta e profeta Ernesto Cardenal da Nicarágua nunca será esquecido. Ele estava humildemente de joelhos e o Papa em pé como um mestre escola corregedor. Só faltava a vara para termos a cena completa.

Para o cristianismo da América Latina a política vaticana sob o Pontificado de João Paulo II foi um retrocesso e na perspectiva da libertação dos pobres um flagelo. A muito custo manteve-se viva a chama e o sonho do Nazareno que se comprometeu com a libertação dos pobres e oprimidos chamando-os bem-aventurados e os primeiros no Reino de Deus.

6. Traços de fundamentalismo católico

Há uma grande contradição entre as atitudes do Papa e seus ensinamentos. Para fora, apresenta-se como um paladino do diálogo, das liberdades, da tolerância, da paz e do ecumenismo. Pediu sucessivas vezes perdão pelos erros e condenações do passado. Reuniu-se com líderes religiosos para juntos rezarem pela paz mundial. Por outro lado, para dentro da Igreja atropelou direitos de expressão, proibiu o diálogo, puniu com mão pesada e produziu uma teologia com tons fortemente fundamentalistas.

Os últimos documentos oficiais sustentam que a única religião verdadeira é a católica. Em nome disso ressuscitou a ideia medieval de que fora da Igreja há risco de não haver salvação. As demais Igrejas não são propriamente igrejas mas comunidades que têm apenas elementos eclesiais. Arroga-se o direito de definir para as mulheres qual é a sua natureza e sua missão no mundo. Proclamou como vontade divina irreformável a incapacidade das mulheres para o sacerdócio.

Comentava, entristecido, um diplomata brasileiro, profundamente cristão: "Só uma Igreja envelhecida, amargurada e crepuscular pode produzir ideais tão melancólicos e de irremediável decadência espiritual”.

7. Apesar de tudo, um santo

O projeto político-eclesial esposado pelo Papa não resolveu os problemas que havia se proposto face à Reforma, à modernidade à questão dos pobres. Antes os agravou e retardou um verdadeiro acerto de contas. A identidade católica foi tão reforçada que deixou a impressão de que o importante mesmo é ser piedoso, obediente aos Pastores, observante das doutrinas e normas eclesiásticas e totalmente integrado na galáxia eclesial e menos tornar-se um ser humano sensível, solidário, comprometido com a justiça dos pobres, compassivo e cuidador da natureza. Incentivou os cristãos a permanecerem seguros no porto ao invés de convocá-los a lançar-se ao mar alto e, corajosos, enfrentarem as ondas perigosas e a vencê-las.

As limitações de seu estilo de governar a Igreja não impediram que João Paulo II realizasse a santidade pessoal em grau eminente. E a realizou no quadro de uma religião "à antiga” com muitas devoções a santos, especialmente a Nossa Senhora, a relíquias e a lugares de peregrinação. Ele foi um homem de profunda oração. Ao rezar por vezes se transfigurava e empalidecia, por outras, gemia e vertia lágrimas. Já foi surpreendido em sua capela particular estendido no chão em forma de cruz, como em êxtase, à semelhança dos "iluminados” espanhóis do século XVI.
A quem cabe a última palavra? À história e a Deus. À nós, só é acessível a história e é ela que dirá de seu real significado para o Cristianismo e para o mundo nesta fase de mudança de paradigmas e de passagem de milênio.
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[Leonardo Boff é teólogo]
FONTE: Adital, 30/04/2014
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